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Os dias se passaram e rapidamente tornaram-se semanas. A fortaleza já não era mais um conjunto de passagens e rostos desconhecidos para Deidra, mas tampouco era o reino de encantos que ela esperava ter. Não havia santuário e não haveria no futuro próximo, Daren caçava todos os dias, seus homens faziam verdadeiros banhos de sangue, e festejavam vezes sem fim como se não houvesse nada mais importante no mundo.

Às vezes chegava a ser assustador, como se todos ali estivessem possuídos por uma infindável sede de sangue.

Deidra, mais que nunca, sentia-se na obrigação de salvar aquele lugar, de tirá-lo das sombras em que seu príncipe se enfiara junto de seus homens. Príncipe este que, apesar de tudo, continuava tentando cativá-la, ganhar sua confiança, e ele de alguma forma tinha conseguido que ela lhe entregasse seu coração.

Conforme os dias foram passando, Deidra percebeu que havia algo mais que ele desejava. Algo por trás de todos os gestos gentis, de todas as flores que ele colheu e de cada sorriso que cedeu. Ele queria muito mais que uma rainha para seu reino, mais que um rosto bonito para enfeitar seu castelo. Mas Deidra ainda não tinha adivinhado o que Daren queria.

Houve então um dia de caçada intensa, maior que as anteriores em comemoração a algum feito entre os caçadores, que Deidra ignorava, mas que para os homens certamente merecia uma festança. Aliás, tudo merecia uma festança regada à carne e sangue, a princesa observou franzindo a testa ao passar por uma pegada sangrenta deixada por um dos homens de Daren ao entrar no castelo.

À noite, começou a chover, um bálsamo para lavar o odor forte que impregnava o pátio do castelo, e um alívio para os pensamentos aflitos de Deidra. Quando as coisas melhorassem, ela pensava, plantaria um jardim ao redor do pátio, com tantas flores que nenhum outro cheiro superaria o perfume. E, é claro, ela baniria qualquer vestígio de caça do castelo. Entretanto, isso não aconteceria tão cedo.

Quando o castelo se encheu de música e bebida, Deidra tentou esquecer qualquer preocupação e simplesmente viver o momento, mas ela soube que as coisas estavam por mudar quando olhou para a expressão do príncipe sentado em seu trono, avaliando-a enquanto bebia, os olhos semicerrados, pensativo. Talvez ele tivesse bebido demais e deixara a máscara de gentileza cair ou simplesmente tinha cansado de atuar.

Ela sentiu um arrepio quando ele levantou decidido e foi em sua direção.

A caçada começara.

***

Daren a observava, sentado em seu trono e envolto na grossa pele de um dos lobos que abatera na fronteira, horas antes de conhecer Deidra. Parecia um troféu adequado para estar ao seu lado, uma relíquia em homenagem a beldade que mudaria seu mundo para sempre. Ele olhou para as paredes de pedra e para suas presas, o urso, a galhada de um cervo, a cabeça de um alce, o crânio de dois lobos, entre as tantas outras pelagens que não se lembrava mais de onde vieram, e soube que dentro de pouco tempo tudo seria diferente. Ele era um colecionador de vidas insatisfeito e estava na hora de reivindicar seu desejo e só a princesa podia atendê-lo.

Seus olhos azuis cheios de malícia passaram pelo voluptuoso corpo dela, que servia mais bebida a um dos convidados, e então pararam sobre o espaço vazio no topo da porta principal. O lugar de honra, o lugar no qual esperava pendurar seu troféu.

Sangue de unicórnio... Ele cantarolou a antiga canção, deixando o trono.

Ao notar seu movimento, Deidra parou, atenta, tal qual a corça que percebe o caçador escondido na floresta.

Daren soltou a caneca e se aproximou dela. Ela achava que a alma que mais precisava de salvação era a dele e ele sabia disso. Trabalhara arduamente para dar a ela a esperança de que poderia mudá-lo.

Sem CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora