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Já era noite quando acamparam para descansar antes de continuar viagem ao raiar do sol. Os homens de Daren acenderam fogueiras e prepararam o jantar, um guisado de aparência duvidosa, mas que se mostrou bastante saboroso.

Padrick postou-se aos pés de um carvalho com suas runas e não tinha intenção de sair de lá tão cedo. Um mero olhar do Sem Coração já o deixava nervoso, então Deidra levou o jantar para ele e depois voltou para perto do fogo, onde Daren estava. Em meio aos desconhecidos, sua presença tornava-se reconfortante.

Um de seus caçadores falava com o príncipe em voz baixa, mas, ao avistá-la, o Sem Coração o dispensou rapidamente.

— Apenas faça o que eu disse — resmungou. — Vá atrás dele antes que cause mais problema. E garanta que Sangue esteja intacto ao chegar aqui!

— Problemas? — ela perguntou ao se sentar ao seu lado, observando a testa franzida do príncipe.

— Aquele garoto estúpido — Daren fez um gesto na direção da estrada mergulhada em escuridão. — Eu lhe dei a tarefa simples de levar Sangue em segurança para casa e o que ele me faz logo na primeira parte da viagem? Fica para trás, perdido na escuridão! — Daren jogou os braços para cima.

Gentilmente, Deidra serviu um pouco de guisado para si e para ele, tomando cuidado para não dizer nada que o irritasse ainda mais.

— Tenho certeza de que eles estão bem — ela comentou depois de um tempo. — Sangue deve ser um cavalo bastante difícil de lidar, ainda mais com um garoto na sela...

Daren a olhou horrorizado, quase cuspindo a sopa.

— Acha que o deixei montar no meu cavalo?! — ele a olhava como se tivesse nascido uma segunda cabeça nela.

Deidra se encolheu.

— Como ele está guiando Sangue então?

— Não é óbvio? — Daren forçou uma risada. — A pé! É assim que se ensina o lugar de garotos desleixados como ele.

E então foi a vez de Deidra o olhar horrorizada.

— Você o deixou vir a pé? Nós estamos na estrada há horas! Isso é... — as palavras lhe faltaram, tamanha indignação. — Isso é horrível! É cruel!

— O que queria que eu fizesse? Trouxesse-o montado nas minhas costas?! — Daren cruzou os braços, arqueando as sobrancelhas, irritado.

"Ótimo!", indignou-se Deidra. "Já estamos brigando como um casal!"

Ela esfregou o rosto, imaginando o garoto que a ajudara daquela vez na floresta quando Daren quase morrera, e que sequer vira o rosto. Precisaria descobrir uma forma de cuidar dele quando estivesse no castelo, já que seu príncipe acabaria matando-o ou, antes disso, enfiando-o em todos os tipos de situações difíceis, sem piedade.

Bem, ela estaria lá para fazer a diferença e corrigir os erros do príncipe, não? Quanto mais pensava, mais acreditava que esta era sua verdadeira missão.

Daren e Deidra continuaram em silêncio, cada um terminando sua porção de guisado. Por fim ele se levantou sem dizer nada e caminhou na direção de seus homens, organizando as tendas.

Aproveitando a deixa, ela se aproximou do homem mais velho que parecia ser o mestre de armas. Ele estava dando água para os cachorros, a matilha de caça de Daren, e Deidra não podia deixar de se perguntar se alguém daria água para o pobre garoto.

Para Sangue ela tinha certeza que dariam.

Tocou o braço do homem.

— Eu tenho um favor a pedir — sussurrou, olhando por sobre o ombro. Se Daren a pegasse, iria ficar muito rabugento. — O garoto que trabalha para o príncipe... aquele que está trazendo o cavalo dele... você pode garantir que ele tenha água e um pouco de guisado quando chegar? São ordens da princesa — ela acrescentou quando o homem hesitou. — Talvez de sua futura rainha.

Ele fez uma reverência, concordando às pressas e Deidra sentiu-se ligeiramente aliviada. Pelo menos isso poderia fazer pelo garoto, dormiria sabendo que ele teria se alimentado.

Ela voltou para perto do fogo ao mesmo tempo em que Daren. Ele trazia no rosto um sorriso malicioso que a arrepiou.

— Estou indo deitar — anunciou pigarreando —, gostaria de vir comigo?

Deidra arregalou os olhos, incapaz de pensar numa resposta. Além do calor do fogo, ela sentiu suas bochechas queimarem por vontade própria.

— Como ousa fazer tal convite? — arfou.

Daren estendeu uma mão.

— Nunca teve curiosidade de dormir com um homem?

Agora sim ela estava violentamente corada e envergonhada. E ofendida! Daren riu.

— Não nesse sentido — ele alertou. — Apenas dormir, compartilhar calor do corpo — o príncipe deu de ombros. — Está uma noite fria, um pouco de companhia pode ser bastante agradável. Ou prefere ficar sozinha? Não tem nenhuma dama de companhia para dormir com você e seu druida com certeza não vai fazer as vezes, seu pai o mataria.

Lívida, Deidra percebeu que era a única mulher em toda a comitiva. Isso não havia passado por sua cabeça antes, agora se sentia um milhão de vezes mais solitária, sua tenda na escuridão não parecia nem de longe convidativa, por mais aconchegante que pudesse ser.

— Venha comigo — Daren incentivou. — Prometo que amanhecerá tão donzela quanto é agora.

Ela olhou desconfiada para a mão dele.

— Se você quebrar a promessa, continuará tendo vantagem ao passo que eu não terei escolha a não ser me casar — murmurou.

— Mas então jamais terei sua confiança — ele encolheu os ombros. — E é isso que prezo.

"Será que ele está falando sério?", ela o olhou nos olhos, que refletiam as chamas da fogueira, e teve uma ideia.

— Eu tenho uma condição.

— Tudo o que quiser!

Bem, ele tinha dado a deixa...

— Permita que o garoto, o cavalariço que está vindo com Sangue, passe a noite na tenda que não será usada.

A expressão do príncipe imediatamente desmoronou em fúria pura, mas ele tinha dado sua palavra. Concordou, ainda que contrariado e de cara fechada, chamando um de seus homens.

— Diga ao garoto que hoje é seu dia de sorte! — ele rosnou, em seguida inspirou profundamente até se acalmar e convocou Deidra para segui-lo.

Naquele momento, sem a máscara de príncipe gentil, Daren parecia muito o monstro Sem Coração que todos pintavam. Deidra o temeu, mas ele fez um esforço para se acalmar. Quando estavam dentro da tenda, embora o coração de Deidra batesse furiosamente, Daren acariciou seu rosto gentilmente e deixou a história passar, convidando-a a deitar ao seu lado.


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