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O dia raiou chuvoso, mas Daren reuniu os homens do mesmo jeito. Cavalos preparados, trombetas de caça em punhos, cães nas coleiras. Ele teria o unicórnio e até o anoitecer seria o mais poderoso de todos os príncipes.

Teria o sangue sagrado de um unicórnio... e o cavalo branco de Manannán domado.

Deidra se prometera fazer daquela a última caçada do príncipe e surgiu resignada do pátio, pálida, envolta em sua capa. Quando ela o encarou, ele sentiu o desafio, a tolinha queria amansá-lo.

— Traga a égua de Deidra! — Daren ordenou a um dos cavalariços e Deidra o espiou com curiosidade. Era um garoto de cabelos escuros, o mesmo que a ajudara na floresta, ela tinha certeza.

Ele correu para dentro do estábulo receoso de ser punido. Voltou pouco depois com a égua castanha de Deidra e segurou-a no lugar enquanto o príncipe a ajudava a subir. Ela lançou ao jovem um olhar de cumplicidade, perguntando-se se ele se lembrava dela, mas desviou o olhar rapidamente, com medo que Daren percebesse seu interesse e punisse o garoto. Então, ela se contentou em sorrir em um breve agradecimento, o que fez o garoto abaixar os olhos para os sapatos puídos e se por a guiar a égua até os demais cavaleiros.

Deidra observou Daren montar em Meia Noite e em seguida empurrar o garoto com o pé. Pensou em repreendê-lo, mas aí sim o pobre sofreria em dobro.

Daren ergueu os olhos para a princesa, como se adivinhasse seus pensamentos. Estava tomado de ciúmes pela caridade dela com o garoto e enfurecido pelo carinho que via em sua expressão, por mais contida que fosse. Não suportava saber que outro homem detinha a atenção dela, os olhares de Deidra tinham que ser todos para ele. "Como ela se atreve?", pensou com os olhos vidrados nos dela. "Um garoto dos estábulos! O que ela vai querer depois? Adotá-lo? Criá-lo como um filhote abandonado? Pior... recolhê-lo em sua cama quando eu não estiver?"

O último questionamento o deixou empertigado. "Deidra que não se atreva!" Tentando conter seu gênio, o príncipe de Dalriada mirou o garoto com vontade de estrangulá-lo.

— Pegue um cavalo e nos acompanhe — ordenou. — Minha noiva pode precisar de ajuda e eu de um cavalo extra para a carga.

"E talvez precise que você se afogue por acidente no rio...", completou mentalmente, fuzilando-o com o olhar. Ficou satisfeito quando o garoto empalideceu. "Como é que se chama esse infeliz mesmo?"

Ele se inclinou para perguntar a um dos homens.

— Como chama este pequeno fedelho?

— Baird, senhor — o homem respondeu.

"Baird, hein?", perscrutou a direção que o garoto seguiu, pensando que era bom saber o nome dele para quando decidisse lhe dar um sumiço. Faria isso antes que Deidra ficasse cheia de ideias. "Elas sempre são cheias de ideias..."

Amansar príncipes.

Mimar garotos.

— Ele tem família?

— Não sei dizer, senhor.

Daren olhou irritado para Deidra, que tocou o braço do garoto quando ele voltou, dirigindo-lhe a palavra. Não pôde escutar o que ela disse, mas uma ira sem tamanho apertou o seu peito. "O braço desse infeliz tem que cair", pensou Daren, "a única pessoa que ela pode tocar sou eu!".

Posicionado na frente do cortejo, como um deus antigo, enciumado e feroz, Daren forçou as pernas em Meia Noite, que não era tão bom quanto Sangue. Lembrar-se disso o deixou ainda mais mal-humorado, pois Sangue estava impossibilitado de caçar, já que Baird fizera alguma coisa errada com sua ferradura e agora o cavalo estava se recuperando no pasto. O príncipe pôs o cortejo em movimento, seguindo em ritmo acelerado rumo aos bosques antigos onde havia uma fonte sagrada que diziam ser um portal para o outro mundo.

Parecia um bom local para se encontrar unicórnios. Se estivesse de bom humor, perguntaria a Deidra, mas ela estava ocupada demais dando suporte para o fedelho e era contra a ideia de matar unicórnios, então se limitou a ficar de boca fechada.

Eles cavalgaram até ouvir o rumor do rio com sua correnteza acelerada, as margens transbordando devido à chuva constante dos últimos dias. Os caçadores pararam e Daren ordenou que esperassem até o seu sinal. Apenas ele, Deidra e o garoto, subitamente eleito como ajudante — e somente porque Daren desejava que ele caísse do cavalo e sofresse um acidente fatal —, seguiram em frente por entre as árvores antigas.

Daren galopou à frente e Deidra deu um leve toque na égua, segurando o braço do garoto — de novo — enquanto passava por ele. Daren espiou por sobre o ombro.

"Eu mesmo vou arrancar o braço desse infeliz, mais cedo ou mais tarde", suspirou, tentando focar no objetivo principal. Contudo, foi inevitável não trincar os dentes ao ouvi-los sussurrando.

— Como se chama? — Deidra perguntou baixinho, achando que ele não estava escutando.

O garoto encolheu os ombros e arriscou um único e ligeiro olhar para ela antes de encarar fixamente as mãos cerradas nas rédeas. "Maravilha, vou arrancar os olhos também para aprender a não cobiçar o que não lhe pertence." Daren tinha certeza de que até o fim daquela caçada, já teria feito um banho de sangue, e não era a imagem do unicórnio que vinha em sua mente.

— Chamo-me Baird, senhora.

— Baird — ela repetiu, assentindo carinhosa. — Certo, então. Vamos ser corajosos.

"É, vamos", pensou Daren rancoroso. "Talvez depois queira recompensar a bravura dele com beijos!"

— O rio é o ponto, é onde deve ficar. — Daren sinalizou de Deidra para a correnteza furiosa e se perguntou quais as chances de Baird cair nela. — Faça o que achar necessário, mas traga o unicórnio para mim! — Ele lançou um olhar para o garoto. — Você vem comigo.

Baird olhou para Deidra como se tivesse sido sentenciado a morte e ela suspirou, dando-lhe um tapinha encorajador no ombro.

Definitivamente, Daren estava decidido a servir Baird no jantar de noivado. Não estava conseguindo lidar com aquele sentimento obscuro que brotava em seu peito; ainda que muitos sentimentos obscuros o povoassem, aquele era como uma erva daninha se alastrando velozmente, tomando toda a sua capacidade de raciocínio.

Por fim, eles se afastaram para a escuridão da floresta antiga enquanto Deidra desceu para o rio.


Sem CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora