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Embarr observava cada sombra da floresta fechada de Dalriada. Não era seu território. Os animais haviam alertado para que fossem cuidadosos, pois ali qualquer coisa, qualquer coisa mesmo, podia ser uma armadilha. Nem o silêncio era seguro.

Ele avistou uma corça de pelo marrom acinzentado pastando no mato alto, tensa como se os caçadores estivessem próximos, embora tudo parecesse ser calmaria. Abaixou a cabeça e seguiu.

Precisava encontrar a princesa, mas ela vivia na fortaleza, afastada dali e se aparecesse no descampado, os caçadores o perseguiriam. Embarr achava que, pela primeira vez em séculos, falharia na missão de olhar pelos descendentes de Oísin e Níamh, mas tinha que continuar tentando, pois esta era sua missão, dada pelos deuses.

De repente uma voz o alcançou, flutuando como um encantamento pelo ar parado da floresta. A corça ergueu a cabeça e fugiu. Uma coruja que dormia no alto piou e fugiu. Em instantes, milhares de pequenas criaturas que o cavalo branco não tinha visto saíram de seus esconderijos e correram para longe.

"É uma armadilha", ele farejou o ar.

Mas também era a voz da princesa, ele pensou, já tomando a direção do canto, pois não podia perder chance de vê-la.

Ele tinha avançado pouco quando entendeu o que de fato estava acontecendo, na verdade não era preciso muito tempo para entender a intenção do príncipe. Não importava a floresta, a magia era sempre a mesma. O unicórnio simplesmente viria. Eles sempre vinham com o chamado certo.

Ele não podia permitir que ela participasse disso, não uma descendente de Níamh e do próprio Mannanán!

A floresta de Dalriada era mais perigosa em todos os sentidos, como se tivesse olhos em cada tronco antigo e ele sentia a presença de criaturas do outro mundo ali, criaturas não tão boas, nem tão más, mas ele não parou para confrontá-las. Seguiu em frente até ouvir o tropel e a voz do príncipe.

Estremeceu, aquele príncipe monstruoso era o culpado de tudo. Um sentimento ruim se apossou do cavalo branco, que saltou uma falha entre dois barrancos e continuou galopando entre faias e freixos. Ele desviava de galhos e troncos muito próximos uns dos outros, alguns tombados, e fazia o possível para galopar mais rápido. Não podia deixar que a princesa se submetesse àquela atrocidade. Então, parou abruptamente quando Cernunnus surgiu em seu caminho, grande, poderoso e intimidante. Embarr foi forçado a parar, frustrado, pateando o solo úmido.

— O que pretende fazer, criança de Mannánan? — perguntou a voz gutural do deus.

Embarr inflou as narinas, ele não sabia o que faria, só sabia não era permitido ferir uma criatura sagrada e não queria que tamanha maldição caísse sobre Deidra, que sempre fora tão gentil. Cernunnus desviou o olhar dele, olhando fixamente para um ponto em específico. Embarr pôde ver a tristeza se apossando do deus e junto com ela veio a mudança na temperatura e no ambiente da floresta. Um vento frio começou a soprar, prestes a transformar-se em tempestade; uma tempestade originada da fúria do deus. A mesma fúria que agora percorria o sangue de Embarr, pois ao seguir o olhar de Cernunnus, entreviu o corpo diminuto e ferido do unicórnio com seu captor se aproximando triunfante.

O príncipe se abaixou, puxando a cabeça da criatura pela crina. Embarr avançou, mesmo com Cernunnus rugindo em seu ouvido. Eles estavam ocultos pela floresta densa, mas o príncipe parecia saber de sua presença, tanto que ergueu a cabeça no mesmo instante em que Embarr se moveu.

Por entre a folhagem, Daren avistou os olhos claros do cavalo branco e sentiu seu poder, sentiu que viria em sua direção, estava pronto para recebê-lo com a espada ou com as cordas, mas de qualquer maneira aquela criatura pertenceria a ele.

Um trovão ensurdeceu Embarr antes que deixasse a proteção das árvores. Ele empinou, derrapando na terra úmida. Cernunnus estava a meio caminho do príncipe agora, parado entre ele e o cavalo branco. Embarr fungou, cabeceando entre a folhagem. Sabia que havia outros humanos e que estaria se arriscando ao se expor, mas iria em frente. Queria alcançar a princesa.

"Ele quer magia e poder", a voz de Cernunnus ressoou na orelha de Embarr. "Ele enxerga sangue e morte por onde passa. E ela não se afastará dele, seus destinos estão muito interligados agora para que qualquer mudança ocorra. Se quer ajudá-la, tenho uma missão para você".

Embarr o ouviu, imóvel agora.

Outro trovão ribombou, assustando os cavalos dos humanos, fazendo-os fugir. Embarr relinchou baixinho na direção do deus, aceitando qualquer missão que tivesse para ele. Afinal, era o cavalo mágico do deus do Outro Mundo. Embarr ficou ainda mais obstinado ao avistar a princesa apavorada, mas ele já não sentia mais necessidade de correr para lugar algum, estava apenas esperando o veredicto do grande senhor da floresta.

Cernunnus se mostrou em toda sua magnitude para o príncipe, saindo da cobertura da folhagem. Tinha o dobro do tamanho de um homem e um par de chifres colossais de gamo. Sua aparência como um todo era um misto de homem e cervo. Os olhos escuros, humanos, encararam Embarr uma última vez, antes de encarar o príncipe, para mostrar quem era o deus da floresta, a criatura com verdadeiro poder

— Você ousa matar uma de minhas criaturas sagradas? — Ele apontou para Daren. Sua voz era calma, era como o sussurrar de todas as árvores da floresta quando o vento soprava.

— Eu tenho sido piedoso com você, mas você me afronta dia após dia. Minha paciência se esgotou. Eu o condeno, mortal. Uma vida por uma vida.

"Faça-o aprender", a voz do deus sussurrou para Embarr. "Use sua sabedoria para ensiná-lo, com todo o encanto do que você é. Eis minha missão".

Da mão esticada do deus, raios surgiram e da névoa um portal se abriu. Daren caiu de joelhos, a mão no peito e a camisa se enchendo de sangue como se o ferimento da flecha que atingira o unicórnio passasse a ser dele.

— Em meu mundo você não viverá mais — ele sentenciou para o príncipe e Embarr sentiu suas poderosas patas falharem, sumirem, até seu corpo estar deitado sobre a grama fria e ele como que adormecendo lentamente em um sono encantado.

Agora ele podia ver a sombra de Cernunnus e Arawn, mas não conseguia vislumbrar nada entre o véu das brumas e logo não conseguia vislumbrar mais nada... como não o faria por muito, muito tempo. 

Sem CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora