23

1.4K 171 30
                                    


Ele não tinha como ter certeza e tampouco perguntaria a alguém, mas estava bastante convencido de que a moça da floresta na verdade era a princesa. O que ela estava fazendo com o príncipe e porque ele estava desacordado eram mistérios que o garoto não queria resolver. Tudo o que desejava era um pouco de sossego e paz, por isso, quando os cavaleiros começaram a procurar pelo Sem Coração, ele inventou uma desculpa qualquer que os calasse.

Os homens que tinham começado a beber cedo não pararam para pensar direito na desculpa e se ocuparam em beber mais. Melhor para ele, que teve tempo para terminar seus afazeres sem ser importunado. Quando todos já estavam jantando, enfurnados no salão, Baird saiu do estábulo para recolher Meia Noite, que ficara pastando na entrada da floresta. Ninguém prestou atenção nele ou lhe perguntou o que fazia, afinal sua função ali era ser invisível e mudo.

Estava passando em frente à porta dos fundos da cozinha quando uma mulher espiou por ali e fez um gesto para que se aproximasse. Baird olhou para os lados para se certificar de que era com ele mesmo que ela queria ter e se aproximou receoso, listando qualquer coisa que pudesse ter feito errado.

— Mandaram te entregar — a mulher sussurrou quando ele estava perto o bastante e usando a sombra do cavalo negro para ocultar o gesto de qualquer olhar curioso, passou-lhe um saquinho de veludo que Baird ficou encarando abismado.

— Pelo quê? — ele perguntou bobamente.

— Não faça perguntas — ela respondeu e em seguida lhe entregou uma trouxa pesada. — E este é seu jantar. Ordens do castelo.

Ele ficou admirado, nunca ganhara nada e duvidava que fosse presente do príncipe — ele sabia que Vossa Majestade sequer estava acordado! —, mas agradeceu e se afastou com o cavalo, desconfiando ainda mais de que a moça não fosse simplesmente uma criada como ela queria dar a entender.

Aconchegado no feno entre as baias de Sangue e Meia Noite, o garoto teve um jantar igual ao dos príncipes no salão do rei, o melhor que já tivera em toda a sua vida até então, e tudo porque fizera uma pequena boa ação. Mas sua mãe sempre dissera que boas ações levam a recompensas por causa da lei do retorno. Ele assentiu para si mesmo, enquanto mastigava.

O jantar o deixara sonolento, ele adormeceu não muito tempo depois.

Na manhã seguinte, Baird quase perdeu a hora, mas ouviu a voz do Sem Coração soando cada vez mais perto e seus sentidos imediatamente o colocaram em alerta. Se não quisesse levar uma surra, era bom estar de pé logo e mostrar ao príncipe que Faris tinha ajeitado a ferradura de Sangue, embora o cavalo não estivesse mancando por culpa sua e sim por culpa de alguma manobra arriscada que o próprio príncipe o forçara a fazer, o que resultara na perda da ferradura.

É lógico que jamais falaria isso em voz alta.

Ele lavou o rosto no cocho de Meia Noite e puxou Sangue para fora da baia onde se pôs a escová-lo. Quanto mais apresentável o garanhão estivesse, menores as chances do príncipe puni-lo depois.

***

Daren prometera não ferir o unicórnio no território dela. Ele não tinha falado nada sobre outros territórios, no entanto.

Aquela criatura inundou seus pensamentos, seus sonhos, cada minuto da sua noite e agora do seu dia, Daren pensava em entrar na maldita floresta e voltar com seu prêmio, mas se fizesse isso, a princesinha ficaria furiosa e ele descobriu que estava começando a gostar dela.

Ou, antes, gostar das vantagens que ela trazia.

É verdade que Deidra era tola e crédula, mas até então ela parecia estar certa em suas crendices. Cavalos brancos e unicórnios... Daren sentia-se estranho. Era um sentimento no qual não gostava de pensar — aliás, Daren não gostava de se aproximar muito de nada que pudesse ser definido como "sentimento" —, mas toda vez que a princesa surgia, ele se pegava sorrindo e tentando fazer algo para chamar sua atenção. Gostava de provocá-la.

Ela era bonita e provavelmente daria uma boa rainha, o que Dalriada precisava, uma rainha adorável para um rei temível. Uma combinação que não tinha como falhar. Sua sorte era que os pais da moça já pareciam interessados na união antes mesmo que ele chegasse ao reino, era perfeito para sua situação.

Ele entrou no estábulo e se deparou com o garoto lidando com seu garanhão, Sangue. Aproximou-se furtivamente até estar o observando por cima do ombro do garoto.

— Você não está fazendo o que eu penso que está fazendo, certo? — rosnou e viu o cavalariço paralisar no lugar. — Está fazendo trancinhas na crina do meu cavalo?

— Não, senhor — o garoto respondeu gaguejando, imediatamente desfazendo as tranças.

— Ora, ora... você fala, afinal — Daren resmungou, afastando-se para inspecionar as patas do garanhão. O garoto permaneceu calado, que era o esperado e desejado dele.

Sangue ainda mancava, porém menos do que quando chegara, dando a Daren a esperança de montá-lo dentro de pouco tempo. Meia Noite era um bom cavalo, mas Sangue era incomparável, o melhor dentre os melhores, tanto que se o estivesse montando no dia anterior, não haveria cavalo branco rebelde ou criatura encantada que escapasse de suas garras.

O mero pensamento do fracasso do dia anterior minou o pouco do bom humor que Daren sentia. Ele soltou a pata do cavalo.

— Da próxima vez, fique longe das patas dos meus garanhões, fui claro?

— Sim, senhor — o garoto murmurou, saindo do caminho do príncipe e mantendo os olhos sempre baixos.

De volta à porta do estábulo, Daren contemplou a floresta.

A outra coisa em que não podia deixar de pensar, embora estivesse tentando evitar, era o cavalo branco. Sua aparição súbita, descrito tal qual aquela lenda boba que a princesa gostava de repetir, era intrigante. Será que Deidra era mesmo descendente de Oísin e Níamh, protegida e sempre seguida pelo cavalo branco encantado?

Bem, ele vira um e aquela aparição fora surpreendente demais, mesmo a flechada... Naquele momento, Daren não tinha conseguido pensar muito bem devido à euforia, mas um cavalo comum estaria morto àquela altura, ao passo que o cavalo branco não apenas se recuperara, mas protegera o unicórnio e ainda tivera força para arrastá-lo floresta a dentro.

Que animal incrível... que montaria perfeita para uma batalha! Tão inteligente, grande e poderoso. Exatamente como Daren.

"Mas como se caça um cavalo encantado?", Daren esfregou o queixo com a barba por fazer, refletindo. "Sangue de unicórnio, sangue de unicórnio...", recitou em pensamento, lembrando-se de uma velha fábula sobre uma mulher enfeitiçada que conseguira tudo o que desejava ao matar uma daquelas criaturas e tocar seu sangue. Daren jamais dera atenção para os versos, sequer se perguntara sobre suas origens, mas agora que vira o unicórnio e o maldito cavalo branco, que poderia ser o de Níamh, tentou imaginar como seria ter tudo o que quisesse... tudo pelo mero preço de fazer o que mais gostava: caçar.

Mas ele não poderia entrar na floresta, jamais encontraria um unicórnio assim. Eles eram mestres do disfarce, o tipo de disfarce que os olhos humanos não poderiam desvendar, exceto se o caçador fosse uma donzela encantadora.

Ou uma donzela encantadora em uma armadilha do príncipe malvado.

"O cavalo branco deve protegê-la, não?", ele sorriu. De repente, Daren poderia conseguir tudo o que queria antes mesmo que o sangue do unicórnio tocasse o chão. Tudo em uma única e longa caçada.

Sem CoraçãoOnde histórias criam vida. Descubra agora