O único barulho é o da TV. Assim que cheguei em casa dei de cara com a expressão furiosa e preocupada do meu pai no mesmo instante em que a Vanessa soltava um “eu te falei que ela estava bem!”. Acabou que com a volta de moto e todo o drama, perdi a hora. Aparentemente eu fiquei quase duas horas fora, o que fez meu pai ligar para a portaria e descobrir que eu não estava lá. E se não fosse a Vanessa a essa altura já tinha policia, bombeiros e até o IML aqui.
A Vanessa conseguiu conter o surto do meu pai e agora estamos aqui na sala para conversar. Na verdade essa foi a ideia da Vanessa, sentarmos e esclarecermos tudo. Enquanto seus olhos correm de mim para meu pai, nós dois olhamos para a TV como se fosse a coisa mais incrível do mundo e que merecesse total atenção. Na verdade eu nem sei direito o que está passando, nem em que canal está. É algum filme ou série, eu acho.
- Tá bom! – A voz da Vanessa ressoa pela sala após quase quinze minutos de silencio. – Vamos conversar. Rebeca, onde você estava?
- Já disse! Eu estava na escadaria. Eu estava no meio da escadaria. – Percebo que minha explicação fez os olhos do meu pai se deslocarem de leve da TV e me analisarem por alguns segundos. – Eu só precisava respirar um pouco e ficar em silencio.
- Agora você vai falar que eu fiz da sua vida um inferno! – Meu pai diz com uma voz rouca mesmo sem desviar o olhar da televisão.
- Rebeca, acho melhor você ir dormir. Você tem aula amanhã cedo e é ainda seu segundo dia. – Vejo que a Vanessa está cansada.
Isso me entristece um pouco. Deve ser difícil para uma mulher como ela ter que aturar tanto drama. Ela ainda 25 anos e está praticamente levando essa casa nos ombros. Mas bom, ela sabia muito bem onde estava se metendo. E eu também.
Quando vim para cá já esperava por isso. Eu nunca consegui conversar com meu pai uma vez sequer nos últimos anos sem terminar em uma briga, com muito grito e choro. Por que agora, que estamos morando debaixo do mesmo teto, não seria diferente? Uma parte de mim achou, de verdade, que seria.
Quando eu era pequena as coisas costumavam a ser diferentes. Eu e meu nunca brigávamos e nem tínhamos motivos para isso. Era tudo perfeito. Parecia, pelo menos. A verdade é que conforme ele se afastou, fui percebendo o quanto éramos diferentes. E aos poucos tudo que tínhamos em comum sumiu. E a única ligação que tínhamos de verdade era o sangue.
Um pouco triste e complicado, levando em consideração que costumávamos ser exemplo de pai e filha. Eu via todo domingo o jogo com ele, mesmo achando um saco e sempre tentando fazer ele prestar mais atenção em mim do que naquele monte de homem correndo atrás de uma bola. E ele sempre me ajudou com as tarefas da escola. Íamos tomar sorvete, ele me levava para andar de bicicleta e eu sempre o admirei. Ele era meu melhor amigo.
Até me trocar pelo seu trabalho.
***
O despertador soa insistente do outro lado do quarto, em cima da escrivaninha. Coloquei ele exatamente nesse lugar para não correr o risco de desligar e voltar a dormir. Assim eu terei que ir até lá e desligar ou esperar um xingamento do meu pai do outro lado da porta. Mas por experiência própria sei que poderia deixar o despertador tocar a manhã inteira, mas meu pai não iria dirigir uma única palavra para mim. Nem mesmo um palavrão.
Vou até o outro lado do quarto e desligo o barulho irritante, apesar do meu dedo estar coçando para apertar mais cinco minutos. Meus olhos estão ardendo e devo imaginar que estou com uma cara horrível. Essa foi uma daquelas noites em que eu só consigo dormir depois das três da manhã. Provavelmente estou igual a um panda, só que sem a parte da fofura.
Depois de me arrastar vagorosamente até o banheiro, até a cozinha e novamente para meu quarto. É a hora de sair para a escola. Decidi acordar hoje mais cedo, como havia falado ontem para mim mesma. Ao pegar o elevador solto um suspiro de alivio ao perceber que o Brian não está dentro. Ultimamente o elevador tem sido nosso maior ponto de encontro, assim como a escada também. O que me faz pensar que eu realmente não tenho mais por onde me locomover sem correr o risco de dar de cara com ele. Também, o que mais eu queria? Moramos no mesmo prédio!
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Just a Year - (COMPLETA)
Teen FictionRebeca mora em São Paulo e está no último ano do ensino médio. Tudo que ela quer é apenas aproveitar esse último ano com sua melhor amiga e se formar logo. Mas o que ela não espera é que seu pai, com quem mantem uma relação conturbada há anos, lhe o...