Epílogo

179 25 27
                                    

Você nunca sabe quando sua vida está pra mudar de verdade. Talvez tente ter alguma noção ou até um certo controle sobre isso, mas a verdade é que nunca estamos preparados pro novo. Nunca estamos preparados pra entender que as coisas vão ser diferentes a partir de um certo momento.

De que tudo está pra mudar.

Mas eu, com meus cem anos de idade — não vou dizer a certa, pode desistir —, supostamente deveria estar acostumado com a ideia de mudanças. Com toda certeza eu deveria estar acostumado.

Só que você nunca está. Porque nunca sabe quando vai mudar.

O dia foi estranho, não sei se você soube. A previsão da semana indicava sol o dia inteiro — característico das primaveras de abril —, mas choveu. Não, não só choveu. Caiu um dilúvio.

Ouso dizer em tempestade. Eu e Nat ficamos fora o dia todo tentando tirar pessoas que ficaram desalojadas e encaminharem-nas pra um lugar seguro. Não era o nosso ramo, mas os bombeiros estavam em dificuldade e nosso foco era salvar vidas. Sempre tinha sido.

Foi um dia cansativo, admito. Nem eu com meu super soro consegui escapar do cansaço e esgotamento físico. Apesar disso, deixei Nat ir tomar banho primeiro. Ela estava desgastada.

Eu estava encharcado, com vários cortes pelo corpo. Não tínhamos conseguido colocar o uniforme, como eu disse, nada foi previsível. Nada foi planejado.

Me comprometi a fazer algo pra comermos, só pra encher o estômago e massa é a única coisa que todo mundo pensa. Então, massa com frio, sopa. Perfeito.

O banho dela precisava ser rápido, ou a luz acabaria e eu passaria frio. Não que já não estivesse passando, mas ignore.

Acelerei o máximo que pude e como sei que ela odeia de morte cozinhar — eu sou o cozinheiro da relação e ela me deu até uma faixa, toda orgulhosa, mas não é que ela não saiba fazer — , resolvo deixar só pra ela esperar cozinhar, torcendo pra que não queime.

Não ignore as manchas de sangue no chão. Por incrível que pareça, cortei meu dedo enquanto picava as batatas. Eu disse que nada estava normal, nada estava igual ao que era. O dia estava estranho. Tudo estava estranho, como se estivessem tentando nos avisar de que algo estava pra mudar.

Liguei a torneira da cozinha deixando o sangue escorrer. A chuva ainda caia lá fora, mas todos os moradores estavam seguros. Ao menos eu esperava que sim.

Enrolei o indicador com papel, o band-aid estava no banheiro que Nat estava. Eu poderia simplesmente entrar lá, mas ela trancou. Disse que a gente tá gastando água demais. Agora ela virou economista.

Talvez caísse sangue na sopa, mas é de leve. Tempero a mais. Isso soou canibal, desculpe.

Preste atenção aos sons. O som da chuva é diferente da água do chuveiro. Um você regula, tem corrente elétrica, o outro você corre. É estranho pensar que deixamos uma água escorrer todos os dias sobre nós, mas fugimos da chuva.

Continue ouvindo os sons. Perceba as diferenças. Ela está lavando o cabelo e tem passos apressados lá fora. Todos dois encharcados pela água.

A chuva aumenta e Nat desliga o chuveiro pra ensaboar as madeixas ruivas. Continue ouvindo os sons, é importante.

A água da sopa está fervendo e minha esposa voltou a ligar a água. Thor deve estar furioso em algum lugar por aí, ou então deve estar querendo se mostrar, como sempre. Vou conversar com ele sobre isso de novo.

Água lá fora, água lá dentro do banheiro. Deveria estar normal, certo? Tudo deveria encaixar nessa frase. Tudo. Mas algo não encaixava, eu disse pra você se atentar aos sons.

Diário De Uma PaixãoOnde histórias criam vida. Descubra agora