Talvez o mundo lá fora nem seja mais o mesmo.
Eu dormi por dias. Meus corpo não tinha forças para fazer nada. De um lado eu, do outro Mickaely. Não nos falamos quase nunca, a não ser quando ela pergunta se eu estou bem e eu respondo com um leve balançar negativo. Eu e ela não sabemos o que fazer. Melanie sumiu o que parecem dias, Nivea ainda não voltou. E eu nem sei se vai. Talvez ela tenha decidido nos deixar apodrecer aqui, até que nossas almas resolvam deixar nossos corpos por desgosto.
Eu não cheguei perto do portal desde aquele momento. Não tenho coragem. Eu lembro daquela garota sendo devorada e imagino o mesmo acontecendo com Melanie. Toda a dor que ela sentiu, todo o desespero daquele momento que eu não fui capaz de me levantar e tentar mais alguma coisa ao invés de gritar como uma criancinha. Eu não sei se é possível ela ainda estar viva. Mesmo que estiver, não tem nada que eu possa fazer. Tudo que passa na minha cabeça parece suicídio. Mickaely está conformada, eu diria. De todas nós, ela era a que sempre aceitava tudo sem questionar, mesmo antes de sermos amigas. Mesmo sabendo que ela também sente a perda de Mel, imagino que o meu vazio seja no mínimo mais culposo.
Eu penso o tempo todo nos meus pais. Nos pais de Melanie que moram na mesma rua. Lembro dos nosso amigos do colégio quando criança e lembro dos motivos pelo quais nos afastamos no ensino médio, o que de longe, foram insignificantes. Eu teria feito tanta coisa diferente se um dia tivesse imaginado uma situação como essa. Mas isso aqui era impossível até nos meus piores pesadelos.
Agora o mundo lá fora deve ser outro. A vida de todas as pessoas que conhecemos deve ter seguido. Eu espero que sim, pelo menos. Me permito pela última vez levar meus pensamentos a Will, e visualizar cada detalhe do rosto e do corpo dele; todos na perfeita harmonia que ele exalava. Que espero que ainda exale, seja lá onde ele está agora. Eu e ele poderíamos ter dado tão certo, que isso dói como uma ferida aberta no peito e eu choro todas as vezes que tento não me culpar. Will deve ter achado uma garota incrível para ele e criado uma família bilíngue maravilhosa. Aquelas criancinhas italianas bronzeadas assim como ele.
Mesmo que isso nem tivesse acontecido comigo, um dia eu queria poder ver como ele ficou mais velho. Como ele fica de cabelo branco e se ele ainda seria charmoso assim como o pai dele é. Fico curiosa com Alan também. Talvez ele mude muito, mas algo me diz que vai ser sempre o mesmo. Teimoso, prepotente e arrogante. Mas ainda assim, com todos os seus defeitos, eu sinto sua falta como a de qualquer outra pessoa. Eu e ele provavelmente nunca mais nos veríamos depois de voltar ao Brasil, e mesmo assim eu espero que ele seja um homem feliz.
Aos poucos as memórias de tudo que aconteceu ficam mais e mais embaçadas. Estou aos poucos esquecendo o rosto de Nivea e tudo que eu vi nos meus sonhos. A visão que ela me mostrou, agora são só flashes confusos apesar de eu ainda lembrar da ordem dos acontecimentos. A única coisa que lembro nitidamente é do cruzeiro. Do sol que eu pegava todo os dias de manhã e das noites que passei com Will ou com Melanie. É a parte boa eu diria. Estou cada vez mais apegada, revivendo em pensamentos cada um desses momentos e tentando esquecer a parte ruim. Ainda assim, tenho consciência que isso não deve passar de uma defesa da minha mente tentando me manter estável sem colapsar em pensamentos negativos. Talvez eu devesse estar agradecida por não sucumbir em ódio em um momento de fraqueza como esse. Mas não deve ser um momento. Deve ser definitivo até um dia que não existirei mais nem em pensamentos.
Meu corpo dói. É a única coisa em mim que ainda me lembra que tenho vida. Apesar da falta de fome e de qualquer outra coisa, eu sinto meus músculos retraindo as vezes. Todos eles ao mesmo tempo. Vem do nada e fica por alguns segundos. Eu sempre prendo e respiração e começo a contar pra deixar passar. Mas tenho medo de uma hora acontecer e não parar mais. Sinto meu peito arder, minhas mãos cravam as unhas na palma e eu mantenho os olhos num ponto fixo do teto escuro enquanto tudo colapsa dentro de mim por um breve momento. Depois passa. Então volto a lembrar da minha vida como um filme do ponto onde parei.
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Prisioneira Marítima
Mystery / Thriller"Se eu teria feito alguma coisa diferente? Quase tudo. Eu teria encarado as coisas de uma forma mais aberta, sabendo lidar com cada erro em cada detalhe. Teria embarcado nessa viagem para me divertir não pra trabalhar. Teria dito ao Alan tudo o que...