Eu tive um sonho que tinha certeza que iria esquecer, mas lembrei perfeitamente. Eu estava mais uma vez no navio, só que no passado. Resolvi vagar sem medo dessa vez pra tentar descobrir mais alguma coisa. Se isso era a oportunidade que eu tinha de encontrar pistas, eu teria que acreditar que estava segura. Mais uma vez, ninguém parecia notar minha presença, como se nessa dimensão, eu que fosse o fantasma.
Parecia a mesma cena de antes; um corredor chique e vintage com pessoas andando alegremente para todos os lados. A música e o cheiro eram os mesmos que eu me lembro. Mas dessa vez Nivea e a outra menina não estavam na minha vista. Então achei que deveria procura-las. Andei em vão por um bom tempo, antes de reconhecer qualquer coisa naquele lugar, até que tive certeza de ter parado no mesmo café onde Pedro trabalha hoje em dia. Ele parece ter a mesma essência de café recém moído. A disposição dos moveis é bem parecida e a paleta de cores é a mesma. Só que os frequentadores eram bem diferentes; bem vestidos, portando jornais, carregando conversas politicas e definitivamente o balconista não tinha nada a ver com Pedro. Na verdade, acabei de reparar que ninguém aqui é como Pedro. Nenhum negro na minha vista. Talvez isso tenha um certo peso.
Olhando pro corredor parece que agora eu poderia me encontrar, então decidi por ir até as escadas. Eu realmente não tenho ideias se elas ficam no mesmo lugar, mas não consigo pensar em nenhum outro lugar que possa me dar respostas. Em pouco tempo consegui achar a porta pesada de metal, que dessa vez não é vermelha, mas branca. Do mesmo modo como no futuro, ninguém parecia usar aquele lugar. Entrei e me surpreendi que dessa vez a escada estava iluminada por pequenas arandelas perto do teto, que mesmo espaçadas permitia que eu visse bastante a minha frente. Consegui fazer o minimo de barulho nesse ambiente silencioso, já que eu estava com a meu pijama e descalça.
Desci até onde me lembrava ser o andar da fenda, e ela não estava lá. Fiquei por alguns segundos encarando a parede onde eu achei que estaria, pensando que deve ter tipo um motivo nessa época pra ela ter surgido. Tomei um susto quando a porta do andar de baixo se abriu em um solavanco e ouvi vozes. Subi um lance de escadas rapidamente para não ser vista e reconheci a voz de Nivea, enquanto me agachava, tentando não deixar minha sombra aparecer para baixo.
-Ah Nivea, você tinha que ter visto a cara deles. - A menina que eu não sabia quem era, gargalhava enquanto segurava a mão de Nivea que permanecia séria ao seu lado. As duas pararam de andar. - Eles não vão aguentar nós duas juntas por muito tempo.
-Eu tenho certeza disso. - Nivea falou com desdém, enquanto se sentava com seu vestido mais um vez branco, no último degrau do lance, de frente para onde era a fenda. - Nós precisamos ser mais cuidadosas. Eu nem sei porque ainda não expulsaram a gente daqui.
-Eles não podem fazer isso meu amor. - A outra menina se sentou também e abraçou Nivea dando um beijo no rosto dela.
-Claro que podem. O capitão já está ficando cansado de ouvir sobre nós. Pouco falta para jogar nossos corpos ao mar.
-Seu pai não deixaria ele fazer isso. - ela mexia no cabelo cacheado.
-Meu pai não liga pra mim desde que minha mãe morreu. Ele está doente demais. Sem ele pra me proteger, vou sofrer ataques de todos os lados.
-Claro que vai. - A menina acariciava Nivea devagar. - Uma mulher que tomou conta dos negócios da família, albina, lésbica, que ainda por cima está noiva de uma negra? Você tem todos os quesitos pra ser perseguida.
Eu estava tentando assimilar essas informações. Então Nivea era noiva da que parecia ser a única mulher negra desse navio, numa época ainda pior. Parei por um minuto de prestar atenção nas duas. Tudo é ainda pior do que eu imaginei. Quer dizer que ela pode estar presa por algo terrível que fizeram com as duas. E se Nivea ainda era um fantasma, o que tinha acontecido com a outra menina?
Quando voltei minha atenção as duas, elas já não estavam falando. Trocavam beijos quentes e passavam as mãos nos corpos uma da outra. Eu achei que deveria sair, mas com elas em silencio, era mais difícil que eu não fosse detectada. Tentei levantar devagar, quando a menina subiu no colo de Nivea e ficou de frente pra mim, mesmo eu sendo rápida pra continuar subindo, ela abriu os olhos e gritou. Eu não precisava olhar pra trás pra saber que Nivea estava atrás de mim. Ela gritava com raiva para que eu parasse e eu ouvi seus passos pesados subindo rápido os degraus. Sai das escadas na primeira porta que achei e disparei no corredor o mais rápido que meus pés permitiam. Ela ainda estava próxima de mim sendo seguida de perto pela cacheada; as duas gritando para que alguém me parasse. Mas eu tinha certeza que as pessoas não estavam me vendo. Mesmo eu esbarrando nelas, apenas pareciam confusas sem saber o que as tinham atingido. Corri muito e subi escadas no meio de um saguão, até que percebi que passei por um homem de uniforme militar no meio da escada. Ele impediu as duas de seguirem e eu esperei para ver o que aconteceria do topo.
-PAREM! O que acham que estão fazendo? - ele perguntou gritando, fazendo todo mundo naquele ambiente voltar a atenção pras duas. Nivea tentava recuperar o fôlego e a outra estava apoiada nos próprio joelhos ainda olhando pra mim.
-Aquela menina estava espionando a gente! - Nivea levantou o braço e apontou pra mim. Eu tenho certeza que o homem olhou na minha direção assim como várias pessoas, mas eles não me viram.
-Você está louca? Não tem menina nenhuma. - O rosto de Nivea era de ódio. Ela alternava o olhar entre o rosto sério do soldado e o meu que devia estar completamente confuso.
-Mas ela ta bem ali... - a outra menina se pôs ao lado de Nivea e continuava olhando para mim.
-Ótimo! Temos duas loucas então. - Ele falou em tom de riso e as pessoas ao redor foram se dispersando, algumas com risadas no rosto, outras olhando feio. - E o que vocês duas estavam fazendo para esse fantasma estar espionando vocês? Duas depravadas como vocês gostam de ter publico, não é mesmo? - O homem falava com raiva. - Tudo que aconteceu hoje vai ser reportado para o capitão.
-Ei! Mas... - A menina falava e Nivea cerrou os pulsos pronto pra atacar o homem mas eu acredito que ela não faria. Tudo que ele disse e o olhar que as pessoas voltavam para as duas me causou ódio também. Mas não tenho ideia do que elas poderiam fazer comigo se eu tentasse falar. Então segui um caminho para longe tentando sumir da vista delas antes que elas lembrem de me perseguir.
De repente me senti tonta e minha visão escureceu. Eu tentei me manter de pé, mas tropecei nas minhas próprias pernas e cai. Na queda, percebi estar de volta a minha cama no hotel em Atenas. Eu sentia calor. Virei rapidamente pra cima. Estava amanhecendo pela claridade que vinha por baixo das cortinas. Percebi que Micaelly dormia calmamente no sofá.
-Serena. - Will acordou ao meu lado e colocou a mão em mim. Eu me assustei com ele e acabei soltando um grito abafado. Eu ainda sentia toda a corrida que tinha feito. - Ei... - ele me segurou e me acalmou no seu colo. Micaelly acordou também e ficou olhando preocupada pra mim. Agora eu teria que explicar tudo que aconteceu.
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Prisioneira Marítima
Misterio / Suspenso"Se eu teria feito alguma coisa diferente? Quase tudo. Eu teria encarado as coisas de uma forma mais aberta, sabendo lidar com cada erro em cada detalhe. Teria embarcado nessa viagem para me divertir não pra trabalhar. Teria dito ao Alan tudo o que...