Capítulo 3 - Me salve

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Em dez minutos alcanço a Rua Pregos, nem um pouco diferente das outras ruas, exceto pela construção modesta que é a escola onde eu e meu irmão frequentamos. Peço à recepcionista para falar com o Sr. Redmond, meu professor, e leva cinco minutos para que eu o veja descendo pelas escadas, com seu jaleco incrivelmente branco e limpo balançando. Redmond é um druida. Está sempre elegante e até seus passos calculados exalam sabedoria. Seu cabelo loiro comprido está amarrado de forma respeitosa e não há um fio fora do lugar.

Druidas têm os melhores cargos e salários, principalmente aqueles que se comprometem a trabalhar num lixão feito o Condado de Wexford.

— Vou me afastar da escola por uma semana — informo para o professor. — Não terei tempo de vir porque me mandaram trabalhar no Beltane.

— E você não parece nem um pouco triste com isso, senhorita Maeve? — indaga Redmond.

— Perdão? — Fico realmente confusa. — É dinheiro, professor.

— Dinheiro acaba, não sabedoria. Há dinheiro em todo lugar.

Só há dinheiro em todo lugar para druidas, quero responder, mas engulo a resposta e sorrio com o máximo de doçura.

— É só uma semana, — insisto — não vou perder muita coisa.

Redmond junta as mãos atrás do corpo. Posso ver como tenta reunir boas palavras através de seus óculos redondos. Ele parece mais velho do que realmente é, sua barba longa nem mesmo é branca ainda.

— Está enganada se pensar que a escola apenas a proporciona o conhecimento para adquirir um emprego digno, ou que os resultados de seus estudos demorem a vir e por isso não valem a pena. — Sua voz é calma e o rosto sereno. — Conhecimento te faz ganhar uma vida, sabedoria ajuda a construir uma. Se comer migalhas e não procurar o pão inteiro, morrerá pelas migalhas.

É estranho como eu penso nisso para o meu irmão, não para mim. Eu não tenho mais tempo ou chance de conquistar algo melhor e estou apenas aguentando até que meu irmão possa assumir as finanças da casa. Brizo vai me ajudar a nos tirar de Wexford, ele tem uma oportunidade que eu não tive.

As vezes em que tenho raiva dos druidas sempre são suprimidas quando penso no meu professor. Respeito-o e até gosto de suas aulas. Ou gostava. Ele me ensinou que eu tenho uma condição rara, chamada albinismo, isso é a causa de meus cabelos serem brancos como nenhum outro e os olhos vermelhos. Eu pareço uma druida e há quem me confunda.

Preciso usar roupagem pesada no trabalho e na rua, e usar um plástico escuro na frente dos olhos, um óculos improvisado. Tudo foi ideia do Sr. Redmond. Ele diz que minha pele é mais suscetível a doenças por conta do albinismo e que os meus olhos são igualmente sensíveis, tanto que preciso de proteção extra para forjar.

Aproveito que não estarei na escola e sigo para minha ferraria. Abro a loja e trabalho um pouco avoada demais, produzindo mais talheres. Não penso em ir na janela em nenhum momento, pois não quero me deparar com o Conan sendo um desprezível com a primeira pessoa a cruzar olhares consigo. Não quero ser essa pessoa, igual ontem. Prefiro suportar a calidez da oficina e a abafação.

Percebo tarde demais que perdi a hora de voltar para casa. O relógio marca absurdas dez horas da noite. Recolho meus pertences apressadamente, apago a fornalha, jogo minhas ferramentas dentro da mochila velha, me coloco para fora e tenho dificuldades em trancar a oficina. É o cotidiano. Maldita chave que não encaixa direito.

Os jornais voando com a ventania da chuva próxima me evidenciam a falta de gente nas redondezas. Há postes queimados pelo caminho e outros continuam piscando com moscas nas lâmpadas. Duvido que alguém virá consertá-los. O esgoto continua vazando e já estou acostumada ao cheiro podre. Mas não estou habituada a ouvir gritos atrás de mim.

Nem penso em desacelerar, muito pelo contrário. Se ouvir um passo atrás de mim, eu corro, esse é meu lema e não serei idiota de pagar para ver igual no dia que me assaltaram. Não importa o quão afastados meus passos fiquem um do outro, os ruídos atrás de mim não se distanciam. Começo a ouvir soluços e preces religiosas entre o choro. As minhas costas rasgam de agonia por não saber o que há ali.

Corre.

A qualquer momento eu tenho a sensação de que me irão me agarrar. Viro o pescoço por reles segundos, há três mulheres no meio da rua deserta. Duas atrás pedem para que a da frente pare de chorar e de continuar seja lá o que esteja fazendo. Quase penso que não estou envolvida nisso, quando a mulher chorosa crava os olhos avermelhados em mim, é aí que minhas pernas vacilam.

— Druida! — Seu berro agudo e duradouro é capaz de me atordoar. Um nível de medo completamente diferente percorre o meu corpo como um raio. Não é um mero assalto, é muito pior. — Me abençoe! Me mate! Me ilumine, por favor!

Corre!

— Me salva! — Não adianta tapar os meus ouvidos. Nunca ouvi nada parecido, a entonação dos gritos é profunda e sinto até na alma. É verdadeiro demais. — Me salva! Eu vou morrer!

Piso acidentalmente na água do esgoto e estou longe de me importar com isso. Meus pelos arrepiam com a sensação de que não vou conseguir aumentar a nossa distância. As súplicas estão cada vez mais próximas e se tornam burburinhos. Me assusto ao sentir o vento tocando minha nuca e minhas pernas formigam com a adrenalina. Penso que ela vai despontar em algum canto da minha visão a qualquer momento. Não sei mais para onde estou indo.

Os meus olhos lacrimejam e atrapalham a visão. Estou absurdamente temerosa de não conseguir escapar. Minha mochila é pesada e a deixo cair das minhas costas, para que eu possa ir mais rápido, e ainda assim não adianta.

Vejo os vultos de casas acendendo as luzes e, quando percebo, estou gritando por socorro. Uma porta é escancarada. Tudo em meu corpo está pulsando ao ver uma silhueta mais baixa à minha frente. Essa mesma me empurra para trás de si e coloca as mãos em outra coisa, então reverbera o som de uma arma sendo engatilhada.

— Um passo mais perto dela e você morre — ameaça uma voz familiar. É uma senhora corcunda, Leanan Sidhe, reconheço-a. Também conhecida como a viúva negra de Wexford. — Me ouviu? — esbraveja outra vez, apontando a espingarda para a mulher que me persegue.

Leanan fala alto e com clareza, mas não tem jeito. A mulher avança contra nós sem pestanejar e escuto o gatilho sendo pressionado, junto do som do disparo. A perseguição acaba com silêncio. Não sei. Não consigo abrir os olhos, estou desabando em fadiga e lágrimas.

Eu não posso mais viver nesse lugar. Não há como esperar Brizo se graduar. Setecentas monas não são nada perto do que precisamos.

A Forjadora do DesastreOnde histórias criam vida. Descubra agora