Há um homem careca de pelo menos noventa quilos ao lado de Brizo e tem veias saltando em seus bíceps e testa. Do outro lado do meu irmão, não se encontra esperança, e sim uma mulher de comportamento inquieto, roendo as unhas. O Beltane não é só a festa dos desalentados, é também o festival dos assassinos que suprimem a sua sede e raiva por um ano. Alguns muito mais que um ano, pois nunca todos os interessados em participar são convocados. Mesmo que seja um evento protagonizado pelos humanos, ele é a coisa mais desumana que já coloquei os meus olhos.
A tosse sobe pela garganta e suspende os meus gritos. Meu irmão continua imóvel. Estou sem ar e sem conseguir enxergar por conta das lágrimas que vejo pingarem no chão. Meus braços tremem, nada funciona. O braço que me segura já não é o do meu pai. É gelado. Os dedos metálicos da armadura e a brutalidade com que me forçam para o chão exalam o ápice da indiferença do guarda druida. Antes estava encarando as minhas lágrimas no solo empoeirado, agora estou contemplando os céus noturnos ainda sem estrelas para me consolarem. A torcida sangrenta continua, e outro braço me agarra. Dessa vez é o meu pai tentando me levantar.
Minhas costas doem. Me empurraram e caí na quina de uma das arquibancadas.
— Segure essa menina direito — repreende o guarda. Está protegido da cabeça aos pés, sequer vejo a sua expressão impassível.
Mas meu pai só tem um braço. Ele não consegue me reerguer, nem segurar.
Sinto o vestido pinicar, desfiado, aos trapos e sujo nas costas, onde bati. O vestido que eu cuidei para ficar intocável. A memória de minha mãe.
— Desculpe, senhor — implora meu pai. Depois que me desconcentro dos céus vazios, vejo que ele não sabe se foca em mim, no guarda ou no meu irmão condenado.
Eu preciso respirar. Eu preciso...
— Que a Ascensão se inicie! — A voz do apresentador se alastra por todo o Salão Cóisir, e sinto a vibração da platéia explodindo em animação.
A plataforma circular na qual estão os competidores desce até o nível da arena; a miniatura de bosque extremamente fechado e traiçoeiro. Perco Brizo de vista, não sei se ele tentou me dizer algo como uma despedida ou um pedido de desculpas. Pode ser que eu tenha perdido a última chance de ver o meu irmão.
Devo dizer que o Beltane não é o evento com a maior e mais reforçada das guardas, afinal as suas regras são bem claras e ninguém ousa desobedecê-las:
Não se pode desistir. Se entrar no campo e matar sem ser convocado como participante, é um assassino e será julgado. Se entrar para retirar um ente querido, um será punido pela desistência e o outro por invasão.
Não, o julgamento não é a morte, mas seria mais fácil se fosse. Não existe pena de morte. Rei Dagda, o Grande Governante, o Pacífico, aboliu a sentença assim que assumiu a liderança de Danann.
Eu tenho medo da saudade. Ela me apavora e esmaga o meu coração desde os oito anos, desde que minha mãe iniciou a peregrinação. O terror me faz ver tudo distorcido, a respiração está presa. Quando penso que nunca mais irei dar um peteleco em Brizo, ou que não iremos mais fofocar como as velhas das redondezas, a minha reação se torna instintiva. Eu odeio a saudade, a sensação de perder algo bom do passado. Reconheço a voz de meu pai tentando me buscar, mas não tenho conhecimento sobre as outras duas.
— Peguem! Parem-na! — é o que gritam sobre mim.
Não se pode pegar alguém que está no ar. Num impulso, eu me joguei das arquibancadas sem proteção e fui mais rápida que o guarda. O chão está a vinte metros de altura e um dos grandes carvalhos retorcidos está no alcance de meus braços. A dor de colidir com a árvore é inexplicável e faz meus pulmões gritarem. A força com que me seguro é excessiva, meus dedos ficam doloridos e meus tendões parecem prestes a se romper. Assim que minhas mãos se firmam em um galho, a respiração volta. Não morri. Desço da árvore sem nenhum cuidado e meus braços se ralam nos galhos por toda parte.
Quando piso na terra firme e esmago algumas folhas, o frescor inesperado me invade. A magia está em todo lugar, posso sentir. Da platéia dá para inalar o cheiro da chuva, aqui dentro do bosque é úmido e relaxante de alguma forma. Me sinto tonta. A sensação do ambiente contrasta com a minha adrenalina e entram em choque. Não consigo nem ouvir o som da torcida, estou isolada de todo o resto do mundo. Está escuro, porém consigo enxergar, como se a lua estivesse iluminando sutilmente. E há grilos, grilos por toda parte. Brizo. Não posso parar para admirar.
Tanto quanto grilos, existe qualquer tipo de arma espalhada nas raízes dos carvalhos; espadas, lanças, arcos, flechas, falcatas, machados e até cotas de malha para os sortudos. Só tenho tempo de encontrar uma falcata presa ao tronco. Assim que a desencravo da madeira, os meus ouvidos me alertam e me viro instantaneamente.
— Oh, encontrei uma imitação de druida. — O rapaz sai da moita sem a menor pressa e para diante de mim. Ele está armado com uma espada, em uma vantagem perigosa. O traje preto que usa é tão opulento quanto o resto de sua aparência. É uma roupagem leve que não atrapalha os seus movimentos, mais custosa que a minha casa.
É impossível me passar de desentendida. Ele é um druida. Nenhum humano é capaz de ter íris tão douradas e as pupilas finas, brilhando como os olhos de um predador noturno, sem falar no nariz arrebitado e a postura ultrajante, provinda da aristocracia. Não posso negar a sua beleza, com cabelos indo até as orelhas, tão negros quanto os limites de um abismo. Eu devo correr para a mata fechada atrás de mim. A espada em sua posse é a menor das ameaças, considerando que é um druida no próprio habitat, no tudo que ele pode controlar ao nosso redor. A natureza está ao seu lado, assim como a sorte.
— Achei que os druidas fossem perfeitos e sábios, e que jamais confundiriam uma albina qualquer. — Meus olhos o seguem firmemente. Respondo qualquer coisa para ganhar tempo.
— Criatura ignorante. — O desdém em sua expressão não é algo que se possa ignorar. Parece querer vomitar estando na minha presença e ergue a espada, na minha direção. — É como dizem: quem vê os problemas vindo da lama jamais saberá dos problemas no céu.
— Não sou participante — corto o assunto, expondo a mão esquerda, para provar. — Não tenho anel.
Viro o pescoço rapidamente para trás. O caminho está livre. Só devo tomar cuidado para não tropeçar nas raízes.
Não sou idiota de dar as costas para um druida com más intenções. Ele também não me deixa escapar de seu olhar, me vê como uma presa fácil, já de aparência abatida e de derrota declarada. Engano dele. O distanciamento de três metros é o máximo que consigo recuar, pois as minhas costas tocam em algo que não existia ali antes: vinhas e galhos. Ele deixa um sorrisinho vitorioso transparecer, um que me assombra.
O druida faz o mesmo gesto que eu fiz com a mão.
— Eu também não tenho um anel. — Não sei o que minha expressão indica, porém temo que o desgraçado esteja se deleitando do meu pânico. — Excitante, não? Somos coisas subversivas aqui. Afinal, por que um druida estaria nesse fim de mundo, se não para se entreter com a escória?
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A Forjadora do Desastre
Fantasy✨Eleita uma das melhores histórias de 2021 pelos embaixadores do Wattpad e finalista no Wattys 2021!✨ Por amor, ela quebrará as regras. Aisling tinha apenas oito anos quando sua mãe foi peregrinar. Quinze quando seu pai entrou num perigoso jogo de t...