Capítulo 34 - Orgulho e miséria

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Hoje o sol não brilhou, os pássaros não cantaram e os risos se calaram. Meu coração sofre em silêncio.

Nunca mais forjarei sequer uma colher. Eles podem usar até um objeto inofensivo para tirar a vida das pessoas que eu admiro. Dói olhar para minhas próprias mãos, sabendo que eu toquei nas flechas e no arco. O peso que está sobre os meus ombros é tão avassalador quanto sentir a falcata no pescoço de Feal.

É como se não houvesse futuro. Estou presa no passado. Sou assassina de novo.

A fila está andando e o silêncio soterra cada um nos seus próprios pensamentos. Muirenn e Muirne estão atrás de mim, mas não quero conversar com ninguém. Gostaria, inclusive, de nem ouvir os meus próprios pensamentos, só mantenho o olhar preso na tulipa roxa que estou segurando com as duas mãos trêmulas.

A garoa não parou. Os meteorologistas de Kildare estão afirmando que hoje é o dia mais frio em séculos e, mesmo assim, cada habitante do condado está nessa fila. Já estou aqui há pelo menos cinco horas, sem forças para procurar em vão pela lua escondida no céu nublado e taciturno. Deve ser quase meia-noite.

Estou acostumada a ficar acordada, ainda tenho o meala se precisar. Eu não me atreverei a cochilar nesse inferno.

O olhar inexpressivo de Dother para o pai desfalecido faz o meu estômago revirar e os olhos arderem numa fúria que mal cabe em mim. Quero matá-lo. Quero matá-lo ainda mais quando eu lembro de ter arrastado o meu pai com hemorragia e estancado aquele ferimento com o próprio peso do meu corpo, enquanto Brizo saiu gritando na rua por um médico. Perco a compostura só de imaginar o meu pai levando a flechada, no lugar de Dagda.

O velório é feito sob uma tenda, onde todos foram convidados a comparecer para prestar as condolências. O caminho está iluminado pelos vagalumes criados com magia e as folhas das árvores ficam cada vez mais densas conforme a fila avança para dentro do bosque. Está chegando a minha vez. Os que estão na minha frente só colocam a flor que carregam em um canto disponível e se ajoelham de frente ao caixão aberto.

O falecido rei veste uma túnica branca e simples demais para sua posição social, estando cuidadosamente mergulhado nas flores que envolvem todo o seu corpo como se estivesse boiando em um mar. Druidas são religiosamente bucólicos, então é de se esperar que seus rituais de luto englobem a natureza. Há canários e pardais piando em cima do caixão, apesar de ser meia-noite.

Quando chega a minha vez, eu vejo claramente os guardas agora cercando um Dub estilhaçado pela perda e o mesmo ocorre com Carman. São os únicos da família real que comparecem ao enterro, os outros são os condes e duques, incluindo Kiera que está esmorecida ao lado do barbudo e ranzinza Conde Aaran. Do outro lado, entre eles está Redmond, reservado em um banco de pedra e com as mãos apoiadas nos joelhos e o rosto abaixado.

Redmond se tornou um homem invejável, de fato. Um discípulo que superou o mestre e agora reza por sua alma.

Melhor eu não falar com ele. Não agora.

Eu só coloco a minha tulipa próxima aos pés de Dagda, junto as mãos para fingir que estou rezando ― não que eu não queira, só não sei como se faz ― e dou dois passos para trás, antes de me virar e seguir com a minha rotina. Não espero nem por Muirenn e Muirne. Estou ocupada. Quero estar ocupada, esvaziar a mente. Quero estar bem longe daqui quando os conflitos internos começarem.

Eu sei de tudo, sei quem são os culpados. Nada garante que não vão atrás da minha cabeça e nada impede de terem me feito de bode expiatório para tudo isso. Encontrar Dother ou Balor pode significar a minha morte. Eles não devem confiar em mim ao ponto de pensar que não irei os denunciar. Até mesmo Carman, se ela estiver envolvida.

A Forjadora do DesastreOnde histórias criam vida. Descubra agora