Capítulo 20 - A marca no pescoço

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Chegamos a um pequeno pátio, após descer um montante de escadas. É a primeira vez que ouço falatório em Kildare depois da festa de Dian, e me sinto inquieta com a visão. Aqui é onde as criadas discutem e se reúnem. Vejo moças e moços, uns tomando café da manhã, com direito a café ou leite achocolatado e torrada com manteiga, e outros se resguardando para apreciarem livros de diversos gêneros. Até encontro Muirenn e Muirne apontando uma para a outra com um prato na mão de uma delas, se xingando em plena manhã.

O termo obair retorna à minha mente, não gosto de como essa palavra soa, menos ainda por eu não conseguir defini-la. O ambiente também embaralha as minhas distinções, aqui é pacífico demais.

― Eu estava prestes a falar sobre, mas Dian nos atrapalhou. ― Dother está se justificando outra vez. ― Me desculpe por isso.

Não gosto de sua entonação. Posso ver através do seu semblante o quanto está incomodado de ter me trazido aqui. Dother é péssimo em esconder aquilo que o desagrada, o que é vantajoso, pelo menos para mim, pois torna mais fácil saber o que o apetece ou não.

― Não entendo, Vossa Alteza, se desculpar pelo o quê? ― Volto a tratá-lo formalmente, de acordo com o nosso combinado.

A sua resposta se torna desnecessária com a aproximação de uma druida loira, de cabelos grandes e repicados. A maquiagem é pesada. Suas unhas são pontudas e demasiadamente grandes, pintadas de preto. Em Wexford um visual desses seria confundido com o de uma marginal, o que não deve ser o caso em Kildare, pois o seu traje de criada é diferente dos outros, além de que ela usa uma tiara na cabeça. Tenho certeza de que é a criada-chefe, e não sei se vou com a sua cara. O seu sorriso hipnótico me lembra o da druida de olhos violeta que me atendeu no Salão Cóisir.

As mãos da mulher estão sempre juntas à frente do corpo. Talvez só Balor se equipare no olhar penetrante e atento como o de uma coruja. Parece que essa criada pode ver tudo, sem nem piscar. Suas pupilas se fixam em elementos de interesse como os gatos fazem, o que é no mínimo inquietante.

― Bridie, quero que conheça Shira, a criada-chefe ― diz Dother, no mesmo tempo em que ela faz uma reverência perfeita. ― Ela te explicará sobre a rotina que você vai seguir de agora em diante.

Minha suspeita com a palavra obair não é à toa. Na verdade, é bem óbvio o que está acontecendo, eu que não quero acreditar nisso. Minha atenção recai sobre Dother, que está com os lábios retraídos em uma linha, com as duas mãos nas costas. Ele não olha mais para mim e, se forçar, posso dizer que está com medo de que eu brigue com ele.

― Bem, irei deixá-las a sós ― avisa ele. ― Seja bem-vinda mais uma vez, Bridie.

― É muito gentil da sua parte trazê-la até aqui, Vossa Alteza. ― Shira faz outra reverência exímia.

Eu fico estagnada e só acordo do meu sonho lúcido com o fechamento da porta. Mesmo com o falatório, ouço os passos de Dother pelo corredor do outro lado e sinto uma imediata pontada de raiva. Não me importa se agora todos acham que sou druida, a ansiedade insiste em aflorar no meu peito quando me encontro sozinha. Não consigo evitar a falta de ar, nem a lembrança da seiva corroendo o meu interior. Até ouso pensar no que pode acontecer se eu estiver em uma sala isolada e me deparar com Dian. Um de nós morrerá, e provavelmente serei eu.

― Bridie, estou certa? ― Shira retoma a minha atenção. ― É um prazer conhecê-la.

Tenho de segurar os meus braços no lugar, pois Shira não dá nenhum indício de querer um aperto de mãos, como é comum onde eu moro. Em Wexford as pessoas que acabam de se conhecer geralmente fazem um aperto de mãos e, quando já minimamente íntimas, sempre nos cumprimentamos com um beijo em cada lado da bochecha. O povo humano se abraça bastante, enquanto em Kildare não há sequer uma pessoa que tenha contato físico com a outra. Isso me causa estranheza, porém tenho de resistir.

A Forjadora do DesastreOnde histórias criam vida. Descubra agora