O nome de Brizo está se repetindo cada vez mais alto na minha cabeça. É como beirar os limites da sanidade. Ameaço forçar um passo para trás e reparo tarde demais que o meu calcanhar está preso por pequenas raízes.
— Me solte — ordeno.
— Não.
Minha mente está nebulosa, nenhum conselho do professor Redmond me recorda da razão. O meu coração está fervilhando, porém, diferente de uma fornalha e um fole, eu não sou capaz de medir a irritação crescente no meu peito. É o suficiente para libertar o meu tornozelo das raízes finas e, antes que eu mesma possa compreender, acerto a têmpora do druida com o cabo da falcata e o vejo cambalear. O sangue escorre de seu rosto como a raiva escorre pelos meus olhos.
Ele estala a língua.
— Vai se arrepender disso. — Tudo nele indica a vontade por mais, está tão sedento quanto os participantes oficiais. Se estiver tonto, não parece.
Já vi meu pai empunhar uma espada antes de ir para o Beltane. Não sou totalmente alheia ao assunto. Mesmo entre os guerreiros que fiz armas, os assisti testar as minhas criações inúmeras vezes. Lembro-me dos movimentos e badalares, tomo distância por instinto quando o druida balança a sua espada contra mim e não tardo a avançar de volta. Nossas lâminas colidem e regresso ao ponto inicial. Eu o feri com o cabo antes porque não pensei direito, poderia já ter acabado com isso. Posso ter perdido a única oportunidade.
Vejo gotas finas e avermelhadas no ar assim que pego o druida de raspão no braço com a minha lâmina e percebo que isso o desconcentra. Mais rápido que os meus próprios pensamentos, esqueço da falcata e o acerto um soco no canto do rosto com tanta força que nós dois acabamos por ir ao chão, na lama.
Levanto-me depressa e sou incapaz de controlar a fadiga. Minha mão está imóvel, dolorida como nunca, deixando a impressão de que bati numa parede de concreto. O meu dedinho uma vez quebrado por um assaltante está latejando e fico parada, encarando o oponente, enquanto busco recuperar os meus sentidos. Não vou demorar para deixá-lo para trás e buscar o meu irmão, só preciso...
— Aonde vai? — Há um lamento fingido em seu tom. — Nenhum de nós está morto ainda.
Na verdade, estamos ambos mortos se pensar que eu já poderia ter enfiado a falcata em seu crânio duas vezes e que ele poderia muito bem fazer um galho dos carvalhos me perfurar pelas costas, com a sua magia.
O seu nariz está sangrando, mas ele continua sorrindo, recheado de escárnio e insatisfeito, divertindo-se com a dor. Isso me paralisa. Até o momento eu considerava o sorriso de Conan como o mais medonho, e o que presencio vindo desse druida é algo novo e muito pior. O sangue também escorre por seus dentes e ele não desfaz a expressão sombria. O ódio queimando nas suas graciosas pupilas de víbora é capaz de me fazer esquecer que eu estou de pé e ele de joelhos, praticamente derrotado. Não me sinto vitoriosa, muito pelo contrário, eu sou apenas uma humana. O druida é imparável, a natureza está por todos os lados e isso nunca vai acabar. É ele quem vai acabar comigo.
— Não vim para me tornar uma assassina — declaro, o mais firme e seca possível, quase indiferente. Não quero me mostrar afetada, corroída por indignação e medo. — Nossos mundos são diferentes. Você vem do céu e descumpre as regras por prazer, eu, vinda da lama, estou descumprindo por amor.
Isso tira uma risada desdenhosa dele. Os pelos dos meus braços eriçam e uma sensação terrível arranha as minhas costas. Não aguento e me coloco a correr, sem encará-lo sequer mais uma vez. Sinto os olhos dele cravados em mim, sedentos por vingança.
— Você vai se arrepender muito por não ter me matado. Muito. Muito mesmo. — Sua promessa é levada pelo vento como uma canção maldita.
Eu desvio das vinhas e galhos no caminho, ganho alguns cortes superficiais e continuo correndo como se o amanhã estivesse prestes a deixar de existir, e talvez não seja tão errado pensar assim.
A arena dá uma impressão de maior grandeza quando se está no meio dela. Pressinto que estou ficando sem tempo e o silêncio me aflige. Quero gritar pelo meu irmão, porém sufoco a vontade e aperto a falcata com cada vez mais força. Me permito cair embaixo de uma moita ao ouvir passos próximos. Prendo a respiração como nunca e consigo ver alguém com botas de salto alto. Não é meu irmão, por isso aguardo.
Suspiro e saio debaixo da moita assim que a área está limpa. Ando por cerca de cinco minutos e tenho sorte por não me deparar com mais ninguém. A cada segundo a angústia aumenta, o que me faz desobedecer completamente a cautela e agir por impulso, fazendo barulho com os meus passos apressados. Aquele druida deve estar me caçando e indo até os confins do Salão Cóisir pela minha cabeça.
Não tenho tempo para pensar em mim, em absolutamente nada. Estou diante de um pesadelo quando menos imagino. Na verdade, eu ainda não estou preparada para isso. O choque que passa pela minha coluna quase me desequilibra, porém estou ciente de que cada segundo é decisivo e não me permito ceder. Eu sempre achei os cabelos castanhos de Brizo lindos, especialmente quando estão soltos, o que é uma raridade. Agora vejo cada um de seus fios sobre o chão, espalhando-se com a brisa fresca lotada de magia. O rastro de cabelo me leva até o meu irmão, prensado contra uma rocha, segurando a lança de metal à frente de si, para que a espada de seu agressor não o corte ao meio.
Brizo está tão transtornado que não me vê, ele olha para o encapuzado, claramente pedindo por piedade. Não haverá misericórdia, eu sei disso. O outro participante é maior e certamente mais velho que o meu irmão, seus braços desnudos são as únicas coisas que vejo e são musculosos. Ele usa um manto marrom de trapos. É tão pobre quanto eu, talvez tão desesperado quanto, talvez tenha família, talvez não tenha. Talvez, talvez...
Eu não me acostumei de imediato com a sensação de bater o martelo no ferro e sentir os meus braços tremelearem. Precisei de destreza e insistência. E volto a me sentir na inexperiência da infância quando, pela primeira vez, eu não atravesso ferro ou metal, e sim carne.
A minha visão é coberta por vermelho e tudo parece pegar fogo. Não aguento segurar a falcata para mais uma estocada, eu perco a lâmina fincada no canto do pescoço da vítima e fracasso em me manter nos eixos. As pernas desabam e a consciência oscila. Caio em cima de Brizo, abraçando-o, cheia de palavras as quais eu jamais serei capaz de proferir. Meu irmão não se desfaz da lança quando retribui o meu gesto. Ele ofega o meu nome mais de uma vez, querendo acreditar que eu estou ali e também querendo que eu seja uma ilusão.
Sabemos que a regra é clara para quem descumpre as leis do Beltane.
— Encontramos ela. — Ouço o metal das armaduras. Várias delas. — Amarrem os dois.
Por mais que eu crave as unhas nas costas de Brizo, me puxam com força o bastante para nos separar e acabo o arranhando, sem querer. Ele também não me alcança. Não consigo me debater, pois bastam instantes para os meus pulsos estarem presos atrás do corpo, por raízes.
— Fui eu que matei! — vocifera Brizo, lutando incansavelmente. — Fui eu!
Os olhos de meu irmão carregam as esperanças por nós dois. Eu sou a irmã mais velha, sempre fui eu que dei um jeito nas coisas, mas não dessa vez, e leva alguns segundos para Brizo entender isso. Não importa o que ele diga, todos os oficiais testemunharam a verdade. A sorte não estava comigo.
— Você será condenada por assassinato e invasão a um evento sagrado — proclama o guarda druida que me conduz brutalmente para fora da arena, inexpressivo.
Não sei por que, mas uma força maior me incita a olhar para a pessoa que perdeu a vida nas minhas mãos.
Acho que eu não tenho mais caretas e expressões para fazer hoje, brincou Feal, no quarto dia de trabalho, fazendo anéis para o Beltane, quando passamos raiva e rimos juntos. Estou exatamente assim, sem feições. Eu já disse que odeio a saudade, e agora ela se apodera de mim, junto à culpa crescente e insuportável no meu peito. Mesmo que eu tenha oferecido a minha alma pela vida daqueles que eu prezo, eu tenho o desprazer de descobrir que a minha alma não vale tanto assim para os deuses. Eu sou só humana.
Feal não poderá mais contar piadas, nem folhear os meus livros didáticos. Está morto. Eu matei um amigo que não deveria estar aqui, estirado na poça que refletirá todos os meus pesadelos. Os tormentos me perseguirão eternamente, afinal, os meus olhos são vermelhos como o sangue manchando o solo sagrado.
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A Forjadora do Desastre
Fantasy✨Eleita uma das melhores histórias de 2021 pelos embaixadores do Wattpad e finalista no Wattys 2021!✨ Por amor, ela quebrará as regras. Aisling tinha apenas oito anos quando sua mãe foi peregrinar. Quinze quando seu pai entrou num perigoso jogo de t...