É a primeira vez que não estou morrendo de sono ao atravessar os túneis da passagem secreta. Eu subo pelas escadas de degraus altos, tomando cuidado com o musgo, e bato à porta do porão, esperando que Muirenn ou Muirne abram para mim, como todos os dias. Elas têm que empurrar a beliche para eu conseguir levantar a passagem e abri-la.
Recentemente eu vi o que Muirenn desenha durante o seu horário de descanso. É um rosto masculino, um homem em torno dos quarenta ou cinquenta anos, barba meio mal feita e um olhar mórbido, do tipo cheio de remorsos e que descontou na bebida. É desconfortável olhar por muito tempo para essa imagem e não tenho coragem de perguntar quem é, temo ser invasiva, especialmente por ter visto sem a sua permissão. Prefiro esperar que ela se abra comigo algum dia.
— Boa noite, Bridie. — É a voz de Dother.
Sequer me lembro do que eu estava pensando, ao ver que é o príncipe quem abre o porão e me dá um vislumbre do seu rosto pela fresta. Sabia que ele viria, mas não que seria um encontro tão repentino, sem me dar a chance de escovar os dentes ou tirar essa roupa encardida.
— Te assustei? — pergunta, oferecendo a mão para me ajudar a subir pelos degraus altos.
Eu não sei se a minha mão se move somente por educação. Meu toque é tão incerto que talvez não mude nada.
— Onde estão as duas? — me refiro às minhas colegas de quarto. É estranhamente incomodativo ficar aqui sem elas. Muirenn e Muirne ao menos estão sempre falando e brigando entre si, e ainda me tratam com certo carinho.
— Não faço ideia. — Acho que Dother está sendo honesto. Seria estranho se ele tivesse as dispensado do próprio quarto só para me ver. — Elas disseram que caminhariam após o horário do jantar e ainda não voltaram, mas não precisa se preocupar, isso acontece todo mês, sempre que Shira diz que pagaram a pensão mensal aos familiares.
— Se você diz...
É tão idiota a forma como eu tento disfarçar o meu nervosismo limpando a região das minhas coxas, mesmo que não esteja tão sujo de cinzas quanto já esteve noutras vezes. Não sei mais se consigo agir normalmente perto dele ou o que eu estou tentando provar a Dother. Parece que eu engoli um passarinho e a minha garganta ficou entalada.
Não se trata mais de agir para agradá-lo. Isso é impossível depois que eu basicamente o chamei de mimado e pisoteei em todo o meu lado cortês por uma fúria irresponsável e que poderia ter custado a minha vida.
Dother pigarreia, antes que o silêncio se perpetue e ninguém tenha mais coragem de pronunciar uma palavra.
— Pode me acompanhar?
Já não é a primeira vez que eu me indago sobre questões recusáveis ou não.
— Não posso sair do Bhaile a essa hora e... E eu só posso me lavar de manhã.
E eu não confio em você. Ainda.
— Não há necessidade de levar nada disso em conta. — Dother abana uma mão, afastando a importância do que eu digo. — Traria nada de bom te pedir para acreditar em mim novamente, então dessa vez eu quero te dar motivos para isso.
— Como?
— Se olhe no espelho — propõe Dother.
Esse definitivamente é o pedido mais estranho que alguém já me fez.
É bem difícil pensar nas possibilidades quando eu imagino que vou ver o meu reflexo e, no máximo, talvez descobrir que há poeira preta feito carvão no meu rosto, o que não é exatamente incomum, dependendo do meu nível de atenção no trabalho.
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A Forjadora do Desastre
Fantasy✨Eleita uma das melhores histórias de 2021 pelos embaixadores do Wattpad e finalista no Wattys 2021!✨ Por amor, ela quebrará as regras. Aisling tinha apenas oito anos quando sua mãe foi peregrinar. Quinze quando seu pai entrou num perigoso jogo de t...