Coração Puro

O rei reina. O rei ruge.

>Kishan<

Sentei na varanda do hotel e coloquei a mochila de Nicole no chão ao meu lado. Decepcionado. Era assim que todos nós nos sentíamos. Dionísio não ajudara em nada. Encarei o horizonte por um momento, não havia nada além de colinas e nuvens pesadas.

Abri a mochila de Nicole (pode até ser errado, mas eu estava curioso), duas mudas de roupa de cor escura, uma bota e um tênis surrado e um cachecol preto de listra verde. Havia também dois estojos, um com canetas e outro de lápis de cores, 3 cadernos, um de capa preta, com diversas anotações que para mim que desconhecia o idioma, não faziam o menor sentido, o outro com todas as folhas em branco, já o outro caderno, tinha a capa de couro escuro com uma aparência que lembrava um velho diário, parecia ter sido confeccionado por ela mesmo, as páginas estavam ocupadas pelos mais diversos desenhos. Um desenho se destacava dos outros, era claramente feito por uma criança e mostrava um guerreiro de armadura atacando um rei que parecia grotesco, mas o curioso era que o guerreiro tinha frechas, como as de um índio cravadas nas costas e pé, e havia um pequeno arqueiro com uma "mulher" (imagino eu) de longos cabelos loiros no canto da folha. Nicole tinha escrito a palavra "TROIA" no centro da folha, abaixo ela acrescentou "João, 8 anos". Continuei folhando o caderno e a cada página o talento de Nicole ficava mais evidente em traços bem feitos que ora era de uma estranha caricatura, ora tão realista que parecia saltar da folha. Virei à página e assim que vi o desenho meus olhos se arregalaram. Céus, que pensamentos pervertidos possuíam a cabeça daquela menina. Era um desenho realista de um homem nu e tudo o que tenho a dizer é que nenhum homem seria tão bem dotado. Continuei virando as páginas e notei um padrão nas poucas palavras que Nicole parecia escrever sempre.

– "Seu coração continua batendo" – ouvi a voz atrás de mim e vi que meu irmão olhava o caderno por sobre o meu ombro. Só um tigre poderia se aproximar tão silenciosamente de outro tigre.

– Desde quando você sabe ler em português? – indaguei.

– Aprendi uma ou duas coisas com o tempo – Ren sorriu, se sentando na cadeira ao meu lado.

– E aqui? O que está escrito?

– "Somos quem podemos ser."

Suspirei, fechando o caderno e voltei a vasculhar a mochila dela, encontrei fitas, como as que Kelsey usa para amarar suas tranças, um pequeno ursinho de pelúcia branco e velho que possuía o cheiro de mirto e rosa. Estava distraído com o urso quando notei algo brilhante na mao de Ren. Se tratava de uma faca de 25cm, de lâmina grossa e afiada, o cabo feito de chifre de boi e o pomo de metal, a arma era antiga, mas muito bem cuidada, somente a bainha parecia velha e mal feita.

– É um brinquedo interessante – Ren me passou a faca ara que pudesse examinar mais de perto.

– Parece uma faca de fazendeiro, nunca tinha visto uma assim – comentei.

– E algo assim? Você já viu? – ele perguntou exibindo um revolvér de cano reforçado e cabo branco – Kishan, quem exatamente era essa garota?

Observei a faca e a arma, as colocando ao lado do urso de pelúcia e fitas. Realmente, que é Nicole?

Abri um dos vários pirulito que Nicole guardava na mochila e levei aos lábios sentindo o gosto de morango.

– Meninos? – Kelsey chamou da sala – Venham tomar café.

Nos levantamos e meu irmão parou na minha frente me olhando nos olhos.

– Nós vamos acha-la, vamos quebrar essa maldição e dar um fim de uma vez por todas a Lokesh.

– Sim – apertei o ombro do meu irmão, sorrindo, mas meu sorriso se desfez quando vi o sangue que escorria pelo meu braço. Abri a boca de surpresa e o doce caiu no chão se quebrando em dezenas de estilhaços vermelhos, meu se dobrou e senti meu estômago se revirar.