Vida desagradável

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>Kishan<

Respirei fundo enquanto caminhava de um lado para o outro em minha jaula. Agora eu era capaz de entender o que meu irmão passou em seus séculos preso em uma jaula viajando de circo em circo, servindo de entretenimento, vendo as caras feias das pessoas contra as grades.

Não sei se sou capaz de supor muito tempo como Ren. Como uma criatura de laboratório, com pessoas tentando me manter preso e dopado, o que minha maldição não permite.

Fazia quase três dias que eu não comia, passando somente a água. Eu estava faminto, entretanto me recuso a carne que o tratador trás, agora isso se faz aparente no barulho alto que sai da minha barriga.

Respirei fundo mais uma vez, ouvi vozes. Me ergui colocando a cabeça contra a grade de ferro, tentando ver quem se aproximava. Ouvi a voz de um homem falando sobre os tigres siberianos, que estavam na jaula ao lado.

Rosnei e me coloquei a arranhar a grade. Nesse momento um grupo de pessoas surgiu, logo a frente um homem de gravata azul celeste falava empolgado, ao seu lado uma garota de capuz respondeu algo, mas não prestei atenção na conversa deles.

Droga! Se ao menos eu conseguisse me transformar em homem por alguns minutos.

– Você vai ficar com ele, Nicole – o homem de gravata falou.

Parei, olhando com curiosidade para eles.

– O que? – a garota de capuz soltou, claramente contrariada.

Eles continuaram discutindo, e eu voltei minha atenção para um homem de preto, parado próximo à porta. Ele não havia entrado com o grupo de alunos. Seus olhos claros analisaram as pessoas até finalmente se voltarem para mim. Rosnei baixinho, o encarando. O homem sorriu e foi embora.

Mais uma vez rosnei e voltei a arranhar a grades de ferro.

Eu precisava encontrar Ren. Precisava avisa-los, de que algo estiva para acontecer. Eu precisava sobretudo, ver Kelsey.

Preciso sair daqui!

Ouvi o barulho da porta se fechando e notei que estava sozinho. Bem, quase sozinho.

A garota de capuz estava parada, encostada na segunda grade de proteção. Ela suspirou, abaixando o capuz e revelando um rosto bonito e redondo, emoldurado por cachos rebeldes de um cabelo ruivo, que lembrava o pelo dos tigres siberianos na jaula ao meu lado. A jovem tinha a pele branca, as bochechas rosadas, seus olhos de um castanho emblemático, me encaravam como se visse minha alma.

Me solte!, pensei, implorando para que ela visse o desespero em meus olhos.

Rosnei, voltando a arranhar a grade.

– Eu sinto muito – ela falou me fazendo parar para encara-la – Você é realmente um animal lindo, não merece ser só um fantoche dos humanos, um entretenimento. A verdade é que nenhum de vocês merece. Sinto muito por sermos seres humanos idiotas e egoístas.

Notei que os leões na jaula a minha frente, se levantaram para olha-la. Talvez eles também entendessem suas palavras, ou então só ouvissem o pesar em sua voz.

– Eu queria salvar vocês da extinção – seus olhos se voltaram para a jaula dos tigres siberianos – Mas eu sou só uma garota. Nem sei falar inglês, quem dirá russo. Como eu poderia ir a Sibéria e tentar salva-los – ela mordeu o lábio inferior, triste – Vocês são tão poucos, e nós somos tantos. Droga! Devíamos protege-los, não mata-los.

A porta se abriu e ela parou de falar. Duas pessoas entraram, uma garota e um garoto, ambos loiros. A menina era bela, de um jeito esbelto e tímido, já o garoto, tinha um ar alegre e bobo, sorrindo como se tivesse ouvido uma piada. E ambos se olhavam, nada discretos em seus flertar.

– Ana! Peter! – a ruiva chamou, num tom mal-humorado – Pela demora, pensei que tinham morrido.

– Quase, prima – o loiro respondeu – Por que você não foi junto?

– Por que eu me governo, capiti?

– Capito, Nick.

– Não me chame de Nick, filho da puta – ela resmungou.

Sorrindo, ele foi para frente da jaula dos outros tigres, e a loira para a dos leões. Quinze minutos se passaram, a ruiva estava concentrada em seu caderno, já os outros dois não paravam de se olharem. Então com um sorriso estranho, o garoto foi até a loira. Ele colocou uma mecha do cabelo dela atrás da orelha e sussurrou em seu ouvido, o que fez a garota arregalar seus olhos azuis. Com minha audição apurada, eu sabia exatamente o que o garoto tinha sem rodeio sugerido, e não era nada romântico. A loira sorriu, envergonhada, e venho até a ruiva.

– Você termina pra mim? – ela entregou o caderno, fazendo a outra franzir a sobrancelhas sem entender, até notar o garoto parado logo atrás.

– Fala sério?! – ela reclamou, mas pegou o caderno.

– Te amo, miga linda. – a loira sorriu, se afastando.

O garoto estava prestes a fazer o mesmo, quando a ruiva o agarrou pelo braço.

– Magoe ela, e eu te castro da mesma maneira que castramos os leitões lá de casa. Entendeu, boboca?

– Humhum – o garoto se inclinou, seus lábios tocando de leve os lábios da ruiva – Você é a melhor prima do mundo.

– Vai se fuder! – ela o empurrou de leve, irritada.

– Com prazer – sorrindo, ele se foi.

Novamente sozinha, a ruiva suspirou, voltando a escrever em seu caderno, olhando para mim de tempos em tempos por de baixo de seu capuz. Me sentei, encarando aqueles impressionantes olhos castanhos, que conforme a luz, se tornavam alaranjados, ou então negros.

Ela jogou seu caderno no chão, e abriu o de sua amiga, voltando-se agora para a jaula dos leões. Ouvi seu lápis correr ferozmente sobre o caderno, enquanto ela sussurrava coisas aleatórias e que para mim, não possuíam sentidos. Passado um tempo, ela voltou para frente da minha jaula, virou algumas páginas do caderno e sorriu docemente para mim.

– Vamos fazer sua ficha descritiva – enquanto ainda escrevia começou a falar, em um tom crítico – Comprimento: cerca de 2,80cm do focinho ao rabo. Coloração: escura, listras negras. Peso: - seus olhos deixaram o papel – Acho que você esta um pouco fora de peso para o seu tamanho.

Suspirei. Claro, fazia três dias que eu não comia direito.

– Esta acima do peso.

Ergui os olhos. Como é?

– Uns 250 quilos, talvez um pouco mais.

Rosnei tão alto que ela notou.

– Que foi? Tudo bem ser gordinho, é fofo. Olhe para mim, estou acima do peso e ainda assim estou feliz.

Rosnei mais alto. Eu não estou gordo!

– Tá bom, calma. Talvez seja o seu pelo que te engorde. Tigre idiota!

Grunhi. Ela suspirou, então abriu um sorriso triste.

– É uma pena você estar preso. Você deveria ser uma criatura magnifica na selva. Como um sonho do Éden. Correndo livremente atrás de uma presa, ou só pelo simples prazer de sentir a terra sob suas patas. – seus olhos se perderam enquanto ela parecia imaginar como seria.

Com um sorriso bobo, seus olhos se focaram em mim novamente.

– Eu queria que você fosse l...

Ela não chegou a terminar sua frase. A porta atrás dela se abriu e todo o meu corpo se arrepiou enquanto um rosnado saía do fundo do meu peito, ecoando pela jaula.

Não fui o único, os outros felinos também se agitaram, se pondo em pé num salto. A garota ficou tensa, só então se virando.

Parado atrás dela, estava Lokesh e seus olhos pousaram em mim com um visível nojo, então ele se voltou sorrindo para a garota, os olhos estavam cheios de malícia.

– Olá, jovem.

Coração PuroOnde histórias criam vida. Descubra agora