Capítulo 6 - Propósito

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-Durante muitos dias após a morte do Seth, eu mal conseguia me olhar no espelho... estava totalmente consumido por um sentimento de culpa, sei lá, eu pensei que eu fosse morrer também... fiquei meio que viciado em calmantes, é uma droga... só que, algumas semanas depois, eu senti de verdade que ele iria querer que eu me perdoasse.-Meu olhar permanece no céu azul, que vejo através do vidro da grande janela da sala da terapeuta. Pedi para que desse um jeito de colocar o divã mais perto da janela, de alguma forma, olhar para o nada me deixa mais confortável.-Agora estou quase na mesma situação, porém, a diferença é que isso é algo que pode ser revertido.

-O Seth sofreu um acidente, você não poderia ter evitado isso, como tenho dito milhares de vezes. A mesma coisa é o incidente com o Henri... o impulso violento dele foi o único responsável pelo que aconteceu.-A Doutora Susan continua andando em círculos, ela pode ser bem evasiva as vezes, mas já notei que é para o meu próprio bem.

Fecho os meus olhos devagar, ainda de frente para a imensidão do céu.

-É impossível alguém acreditar em mim quando digo que ele só fez aquilo para se defender...-Suspiro.

-Eu acredito em você.-Me surpreende, e dessa vez não a ouço anotar nada. O que excepcionalmente, na minha percepção, significa que tô menos maluco. Mas não deixo de pensar que pode ser tudo um truque para que eu me abra mais.

-Para os outros... parece tão difícil. O Henri ainda vai ser preso injustamente e provavelmente apodrecer na cadeia.

Ouço-a levantar de sua cadeira giratória super confortável.

-Kody...-Chama a minha antenção, eu abro os meus olhos, esqueço do céu e viro-me devagar para lidar com uma lição de moral.-As coisas precisam ser do jeito que são. Eu acredito na justiça, uma hora ou outra, todas as coisas vão para o seu devido lugar. E no momento, a única coisa em que você deve interferir é nos seus pensamentos. Pense mais em si próprio, em tudo o que ainda pode viver... há uma infinidade de possibilidades só para você.

A palavra "infinidade", de repente, me causa um frio na barriga. Pode ser o tudo ou o nada, e eu estou acostumado com o nada. Na situação de merda em que estou, não consigo nem pensar em por onde começar para mudar isso. Meu sentimento de culpa vai me corroer por dentro para sempre.

*

Bom, a coisa toda complicou no meu caminho para casa. A Nelly, namorada do irmão do Seth, que a propósito acabei de descobrir a existência de ambos, quer me encontrar, e perguntou qual lugar costumávamos ir. Eu estava decidido a não responder, totalmente determinado, mas por um instante pensei... ela pareceu tão legal na sexta que decidi dar uma chance, mesmo ainda sendo meio complicado para mim.
A festa foi um desastre e não demoramos por lá. Callie estava muito bêbada para "tirar o atraso", como ela mesma diz, então a arrastei para sua casa, não deixando de ficar preocupado. Ultimamente tudo me preocupa.

Após passar em casa para avisar que estou bem, fui para o lugar marcado, na hora marcada. Cinco da tarde, cafeteria próxima ao colégio. Na última vez em que entrei nesse lugar, eu estava com Seth e ele fazia alguma piada sem graça. Se fosse hoje, eu iria rir muito e dizer que foi a melhor que já ouvi na vida. O lugar parece tão... cinza agora. A atmosfera também está pesada, pelo menos para mim. A cada passo que dou, é uma memória diferente... que me lembro com riqueza de detalhes, e é assim quando se trata de Seth. Lembro muito bem de cada detalhe.

Empurro a porta de vidro, ouvindo o barulho familiar e cheio de recordações do sininho e não encontrando nenhum rosto familiar nas mesas. Suspiro e sigo em frente para me sentar e aguardar. Sento-me em um lugar onde posso ver com clareza quem entra e quem sai.
Tenho meu celular em mãos para tentar escapar da tortura que é estar... sozinho aqui.
Karen me agradece por não contar para ninguém quem é o verdadeiro pai do bebê que cresce na sua barriga. Ela não precisa se preocupar, isso não é da minha conta. Tem lidado com isso com muita responsabilidade, eu estaria em choque contínuo.

O sininho da porta ecoa pelo estabelecimento, tento digitar mais rápido para então olhar, mas acredito que ela queira conversar mais, o que acaba atrapalhando os meus planos. Não a julgo, algo trágico nos une, e se precisa de apoio, mesmo que não pareça, estou aqui.

Enquanto digita, por um milésimo (quer dizer, era o que eu pretendia) ergo o meu olhar. Eu meio que tive a mesma sensação de quando dava de cara com Seth... a sensação de quando nos conhecemos nesse lugar. É tanto que se eu estivesse de pé, com certeza precisaria me equilibrar apoiado em alguma coisa. Entretanto, é só o seu irmão, que aparentemente tem uma personalidade totalmente oposta, diferente do poço de responsabilidades que Seth era.

-Eu... tenho que ir...-Começo a me levantar, ao notar que não posso garantir que sou capaz de lidar com a situação.

-Peraí! Eu falei com a Nelly, ela concordou que seria melhor conversamos a sós.-Ele não me impede de levantar, deve ter mais alguns argumentos escondidos para serem usados. Permanece de pé até que eu volte a me sentar, e então arrasta a cadeira de frente para mim.-Obrigado.

Eu evito que os nossos olhares se encontrem assim como evito o meu sentimento de culpa, duas coisas inevitáveis. Eu meio que quero muito olhá-lo, bem no fundo dos seus olhos, mas eu simplesmente não consigo...

-Eu acho que não temos sobre o que conversar...

-Naquela noite, o Seth tirou uma corda do pescoço para ir te ver.-De repente, despeja essa informação na mesa, como se eu estivesse preparado... bom, é evidente que não sabe que eu não sou dessas pessoas que superam tudo rápido.

No momento, me encontro praticamente boquiaberto. Impressionado, e com muitos motivos. Seth morreria de qualquer forma. A quem posso culpar, já que o acaso não existe?

-Eu...-Tento balbuciar.

-A pressão em casa era fodida... e depois que fui embora, as coisas pioraram. O Seth que todo mundo enxergava era feliz e ia a igreja aos domingos expontaneamente, o verdadeiro, só estava vivo porque não queria magoar ninguém.

Eu nunca o enxerguei dessa forma. Sério, era impossível desconfiar de alguma coisa. Sempre achei que tinha a vida social e a saúde mental que qualquer adolescentes desejaria ter. Ao que tudo indica, sempre estou enganado. Eu não sei mais no que pensar. Meu sentimento de culpa não reduziu, agora, além disso, me sinto irresponsável.

-Não...-Tento dizer algo, mas não consigo completar a frase.

-Eu o deixei sozinho. Parece que todo mundo ferrou com ele de alguma forma, menos você.

Mais uma demagogia para a minha lista imensa. Sinto vontade de rir, mas é de nervosismo. Também sinto que vou chorar a qualquer momento, e isso só não aconteceu ainda pelo fato de eu estar muito confuso. Eu quero ser sincero comigo mesmo, e para isso, preciso ser também com todo mundo.

-Você não faz idéia.-Digo, depois de alguns segundos, não conseguindo conter um riso de gente perturbada que vem de repente. Nunca senti que estava tão perto de enlouquecer como ultimamente, mas agora, passou dos limites. Não posso aceitar que me vejam como um exemplo.-Eu traí ele... eu menti um milhão de vezes e mal conseguia dizer que o amava. Agora é oficial, todo mundo ferrou com o Seth, mas eu... eu tô no topo dessa lista.

Claramente impressionado e meio emocionado, Oliver busca palavras, elas estão por toda parte, mas não as certas. Quanto a mim, preciso com urgência engolir alguns comprimidos, ou a coisa vai ficar feia.
São alguns minutos de silêncio, eu preferia que me desse um soco na cara, sinto que mereço.

-Ele escreveu isso naquela noite.-Rapidamente, enfia a mão no bolso do seu casaco e coloca sobre a mesa o que aparenta ser uma folha de papel dobrada, e então a empurra para mim. Eu a encaro aguardando o que mais tem a dizer.-Eu não sei o que ele escreveu aí. Ninguém sabe...-Meu olhar o segue quando noto que não consigo ler através do papel fechado.-Até mais...

Levanta-se devagar, caminhando para a porta da saída.

FrenesiOnde histórias criam vida. Descubra agora