-É exatamente como estar caindo de um penhasco. Sem um chão para ir de encontro e ter uma morte dolorosa, o que, sinceramente, seria muito melhor. É como estar numa queda infinita e sem saber o que me espera no final desta. Não posso gritar, pois ninguém irá ouvir ou poder me ajudar, e além disso, eu não consigo gritar por ajuda, preciso usar o fôlego que me resta para respirar. Meus pulmões... eles estão melhores, mas ainda assim me sinto sufocado. Mais do que nunca. Eu costumava ficar triste e sentir enjôo, mas agora, simplesmente não tenho uma palavra para resumir o que sinto. Os medicamentos acabam com a minha ansiedade, com a minha insônia, com a minha aflição, com o meu medo... mas tem essa coisa que continuo sentindo...
Abro os meus olhos devagar, enquanto permaneço deitado no divã e encarando o teto de cor branca. Quando vou me levantar, preciso planejar minutos antes, e então o faço, mas ainda não é o momento.
Minhas lágrimas já não caem mais e isso é um grande alívio, há alguns dias atrás eu mal podia parar pra pensar.-No que você está pensando, durante a queda?-Questiona a minha nova e jovem psicóloga, Doutora Susan. Ela não tem me feito tantas perguntas e eu agradeço muito por isso. A melhor escolha que fiz em anos foi trocar de terapeuta. É bom sentir que estou num simples diálogo com uma amiga ao invés de numa sessão de terapia para gente perturbada. O barulho dela mexendo seu chá na xícara me ajuda a relaxar, não sei de que forma.
-Em nada.-Mantenho meus olhos abertos enquanto encaro o teto, quero provar que ainda tenho lágrimas.
-Parece que alguma coisa mudou, isso é bom.
Parece impossível não pensar em nada, mas é basicamente isso. Eu estou caindo, em lugar nenhum, e sem pensar em absolutamente nada além de escuridão. Isso acontece há pouco tempo. Antes, o que não saia da minha cabeça era um certo rosto, mas eu só lembrava deste como no último momento em que o vi. As lembranças meio que tinham ido embora há um bom tempo, no seu rosto, um borrão. Eu não conseguia o encarar nos meus sonhos, e nas lembranças, simplesmente não conseguia o enxergar, só quando me lembrava daquela última vez em que o vi.
-Estou pensando em parar com os medicamentos para dormir.
Não a vejo, mas quando o digo, tenho certeza de que mostra surpresa. Tem meses que não passo um dia sequer sem engolir menos de dois comprimido, afirmar isso chega a surpreender até a mim mesmo, que já estou quase arrependido de tomar essa decisão por tanto pensar no "o que vem depois?". Mas o que tem feito a minha vida não ser tão entediante assim é agir sem pensar nisso.
A verdade é que os medicamentos estão atrapalhando o meu desempenho. Comecei a trabalhar no cinema mais decaído do mundo, não que eu precise no momento, mas achei que seria bom para me manter ocupado, a Dra. e a minha mãe amaram a idéia. Só não conto a parte em que confundo as sessões e eventualmente causo revolta entre as pessoas que querem assistir aos filmes. Eu não quero que isso aconteça mais, ficar esquecendo do básico.-É uma atitude admirável. Porém, você sabe que não será fácil parar de repente, não é?-Ouço-a anotar algo num papel.-E também precisará conversar com a sua mãe sobre isso, faltam somente poucos meses, mas você ainda não é maior...
Assinto, sem levantar ainda. Não posso esquecer de ressaltar que eu não deveria, mas estou quase enlouquecendo por envelhecer e ainda não ter planos para o futuro que está bem a minha frente. Acho que isso será assunto para a nossa próxima sessão, aqui, me sinto confortável para comentar sobre a maioria das coisas, e só não digo que a doutora é a minha melhor amiga porque a Callie surtaria, depois de tudo o que fez por mim recentemente.
-Pode falar com ela... aproveita e pede pra ela devolver as facas para a cozinha e as lâminas ao banheiro.
-Sua mãe tem se esforçado. Essa é a forma que ela encontrou para mostrar que se importa com você, Kody.
-Sério? Achei que fosse ir ao meu quarto a cada dez minutos para perguntar se comi ou se estou melhor. Tipo... melhor do que?!
Dou de ombros.
Minha mãe adquiriu uma espécie de paranóia, logo após a minha primeira sessão, ainda com o outro terapeuta. Eu não sei o que ele contou, mas ao que parece, ela simplesmente notou que era uma péssima ideia deixar objetos cortantes por perto ou com fácil acesso. Mesmo existindo infinitas formas de suicídio, como uma overdose de medicamentos, que foi o que eu quase tive naquele dia.-Você pode pedir gentilmente para ela respeitar o seu espaço em determinados momentos. E claro, não vamos esquecer que existe toda uma vida além do seu quarto e do seu meio período de trabalho durante a noite. A preocupação dela está totalmente ligada a sua saúde mental.
Ergo-me um pouco para dar uma olhada no relógio na parede, mas não o vejo. Sério mesmo? há dois dias atrás ele estava bem alí, agora não há nada além de uma parede vazia.
-Sei...
-Você precisa ter o seu próprio tempo, Kody. Para tudo. As horas são só um detalhe que lhe fazem achar que deve agir por impulso.
A verdade é que quero ir para o meu quarto e ficar escondido em baixo dos lençóis até chegar o horário de sair para o trabalho, e não ouvir lições de moral, mas é claro que não vou comentar sobre isso aqui. Com o passar do tempo, aprendi que é melhor não ter uma resposta do que mentir.
A doutora sabe muito bem do esforço que faço para não pensar em tudo o que aconteceu, então não sinto necessidade de ficar ressaltando.-Eu vou... à casa da Callie.
Começo a me levantar devagar, porém ainda permanecendo sentado por um tempo. A doutora, por sua vez, assente devagar sem tirar seus olhos azuis de mim.
-O que a sua mãe acha disso?
Dou de ombros pela décima vez nessa consulta.
-Tudo bem.
-E você, o que acha disso?
Eu acho que vai muito além da necessidade de provar algo para mim mesmo. Quando eu olhar para a grama morta do jardim da casa ao lado, o meu coração vai bater mais rápido, vou começar a suar e vou querer ir até lá correndo, porque tem sido o que eu mais gostaria de fazer, mas isso já não importa mais tanto assim. Eu vou lidar com isso como lidei com a depressão e com as crises de ansiedade, é só mais uma tempestade, na história de alguém que já enfrentou dilúvios.
-Tudo bem também.
Após levantar-me, caminho devagar até a grande janela de vidro com uma vista privilegiada ao céu e aos prédios, vejo as pessoas bem pequenininhas lá em baixo. Seria tão reconfortante se fosse isso o que eu visse no final do meu penhasco.
-O que acha de falarmos sobre os seus sonhos? Tem tido muitos?
Ouço novamente o barulho da sua caneta no papel, enquanto meus olhos acompanham uma ave no imenso céu azul.
-Eu tenho dificuldade para lembrar deles quando durmo sob efeito de alprazolam. Mas geralmente envolvem... quedas... para lugar nenhum. Ou afogamento, as vezes estou correndo...
Minha mão direita vai de encontro ao vidro da janela, e não sei bem motivo. Talvez eu tenha muita inveja da liberdade da ave que voa solitária.
-Está fazendo cinco meses... aquela foi a última vez em que você sonhou com ele?
-Você pode dizer o nome dele, doutora.-O esforço que ela faz pra chegar no assunto do delírio disfarçado de sonho que tive enquanto estava apagado por conta da minha tentativa falha de tomar todas as pílulas que eu tinha em casa, resultando num coma de alguns dias, me deixa intrigado.
-O Henri com certeza está muito longe e não pode te machucar. Mas a sua ansiedade pode não conseguir interpretar isso e o seu subconsciente pode proporcionar pesadelos. O que pode prejudicar a sua saúde mental.-Não importa o contexto, sempre que ouço o nome dele, paro o que estou fazendo e presto total atenção no que está sendo dito.-Eu quero que prometa que vai me ligar se isso acontecer, a qualquer momento.
Assinto, fechando os meus olhos brevemente. "não se preocupe, doutora. Se isso acontecer, a última coisa que vou me lembrar é de ligar para alguém" penso.
Ainda sinto frio na barriga quando lembro que disse que me amava. Mas... isso nunca aconteceu. Não de verdade.
E, sendo sincero, se fosse para acontecer naquelas circunstâncias, eu preferia que não acontecesse.
Eu o amo muito, porém, não tenho certeza de que seria bom para mim estarmos juntos.
Se tudo fosse diferente...Uma única lágrima cai do meu olho direito, e só.
VOCÊ ESTÁ LENDO
Frenesi
RomanceSEQUÊNCIA DE "BULLYING". "Eu não posso esquecer de quem eu sou... Onde você está? Por que não volta para mim, para então podermos resolver toda essa bagunça? E se... eu acabar me interessando por outra pessoa? (...) para o nosso bem, eu não posso es...