Capítulo 20 - Contentamento

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Voltei para os medicamentos. Na verdade, foi a única solução que encontrei, numa madrugada de incerteza e culpa. Minhas olheiras parecem muito mais visíveis, e por mais que eu esteja sempre morrendo de sono, não consigo nem fechar os olhos. Foi a primeira coisa que a doutora notou, hoje mais cedo. Ela olhou para a minha cara e perguntou se eu tinha tomado a dose certa. Eu, bobo, tentava esconder como tenho feito em casa. Para a minha mãe, tenho progredido como nunca.
O principal pivô do agravamento da minha crise é Karen. Dois dias atrás, lhe contei sobre o que de fato havia no lugar onde ela disse que poderia ter qualquer coisa. Não obtive resposta alguma, 48 horas de auto tortura, agonia e ansiedade, como quem espera o resultado de um enxame. Nada ainda.

A idéia de que ainda tem muita coisa para acontecer, tudo ao mesmo tempo, me atormenta. Pessoas no meu estado nunca vão conseguir sentar e esperar os problemas serem resolvidos.
Estou decidido a exigir uma resposta de Karen mais tarde, para ir em frente com isso, independente de sua ajuda, que a propósito seria muito necessária.

-Você conversaria com o Henri?-Perguntei para a doutora mais cedo. Ao contrário do que imaginei, a pergunta fora de contexto (antes falavamos sobre os medicamentos) não a surpreendeu. Assentiu, decidida.

Não é nenhuma novidade que ele precisa, mais do que ninguém, de ajuda profissional. Mas eu não quero que seja obrigado a sentar na frente de alguém que não tá nem aí, e que só vai lhe dizer o óbvio e dar ordens de como agir. Eu confio muito na Dra. Susan, posso até dizer que é a pessoa em que mais confio. Ela não nos julga, como pude perceber nos olhares dos outros, e a sua empatia é visível, é como conversar com uma amiga de longa data... mas não deixo de achar que talvez eu esteja exigindo de mais.

-Com certeza.-Disse, levantando-se de sua cadeira, isso é meio que raro de acontecer durante uma sessão.-Mas você deve saber que o tipo de ajuda que Henri precisa, vai além do que posso oferecer, não é?

Não tive reação, continuei com o meu olhar parado no nada. De repente, o divã me pareceu desconfortável. A verdade é desconfortável, e eu não me sinto pronto para lidar com ela.

-Não...-Disse eu, sem ao menos saber onde queria chegar.

-O que é ideal para você, pode não ser ideal para ele. Além do suposto transtorno, os acontecimentos recentes podem desencandear numa personalidade agressiva, que pode chegar a ser perigosa. Eu sinto muito.-Comecei a assentir, somente por não suportar o que estava ouvindo.-Saiba que você não está aqui para ser julgado. Eu preciso que seja sincero, Kody. Você tem encontrado o Henri recentemente?

Continuei assentindo, enquanto as minhas lágrimas escorriam.

*

Estar sozinho em casa é bom, excepcionalmente hoje, que não serei obrigado a explicar o meu comportamento estranho para ninguém. E, digamos que estou no auge dos comportamentos estranhos.
Minha irmã torceu o tornozelo na aula de balé e foi parar no hospital. Nada grave, mas acontece que a minha mãe, que desconhece a palavra "limite", proibiu os médicos de liberarem ela. Ficou com receio de haver uma piora. Sim, uma piora de uma simples torção. A Lili não gostou nada disso, mas as duas estão lá, e aparentemente não voltarão essa noite.

O motivo de eu não sair da varanda do meu quarto, é que ontem a tarde escrevi com giz no nosso banco que precisava vê-lo. Ele já esteve aqui uma vez, poderia muito bem aparecer novamente. Acredito que já esteja longe; não apareceu ontem, hoje provavelmente também não aparecerá, mas se eu não tiver fé em alguma coisa, o que vai me tirar da cama?

O barulho da TV ligada me fez sentir menos sozinho, enquanto observo os carros passarem lá em baixo. Como um fantasma que não pode sair de casa pois está preso pela eternidade.
Convidar Callie para me fazer companhia estava fora de cogitação. Estou indo bem em continuar dando um tempo na nossa amizade, até a fiz surtar numa mensagem de voz de quase dez minutos que me enviou. Entre outras cem. Eu falei que ficaria tudo bem em breve.
Acabei de encerrar uma ligação com Oliver, ele até que me fez rir, mas eu não quis abusar. Já tem feito mais do que deveria.

Volto para o meu quarto, tenho que exigir um retorno de Karen. Não posso continuar destruindo o que ainda me resta de neurônios. O tempo está passando, Henri vai ser preso a qualquer momento, sendo que temos provas o suficiente para inocentá-lo. A sua ajuda é muito importante, mas ficar esperando a sua boa vontade já é exagero.

Cobro a sua posição numa mensagem de texto. No exato momento em que a envio, ouço o barulho da maçaneta da porta lá em baixo. É uma maçaneta velha, então o barulho ecoa pela casa toda, principalmente quando está silenciosa. São quase meia noite, então imagino que seja a minha mãe para ter certeza de que as coisas estão em ordem. O estranho é ela ainda não ter gritado "querido, está tudo bem?".
De qualquer forma, vou lá em baixo para que não pense que tentei me matar de novo e chame uma ambulância.
Meus passos são curtos e despretensiosos. Provavelmente reclamará por eu não ter trancado.

Quando chego a sala, não a vejo. Também não imagino que seja Callie tentando me pregar uma peça, totalmente fora de cogitação.

-Mãe?-Digo, acendendo as luzes. Caminho até a porta para trancar, como deveria ter feito. E não fiz por... talvez estar esperando alguém.

-Você me disse para vir.

Frio na barriga. Possivelmente no corpo todo, já que congelo antes mesmo de girar a chave. Estou acordado, e acabei de ouvir a voz de Henri bem atrás de mim. Meio que viro num pulo, agora posso vê-lo. Sempre é uma surpresa, por isso o meu coração parece criar asas. Ele, continua abatido como antes, não parece que condiz com o que a doutora disse mais cedo. E além disso, eu não dou a mínima.

-Você...-Digo.-É real?

-Não temos muito tempo.-Quando o diz, larga a sua mochila no chão e meio que abre os seus braços para mim.

Se isso for a porra de uma alucinação causada pelos meus medicamentos, eu quero ficar preso nela para sempre. Corro para abraçá-lo antes que desapareça -pois sei que isso é possível- nunca o abracei tão forte antes.
Não faço perguntas, não ainda. Tudo o que quero é aproveitar a sua companhia.

Na minha mente, é como se o tempo parasse lá fora. Nada mais importa, nada além dos limites dessa casa, onde estamos. Me permito, mesmo que involuntáriamente e por um instante, esquecer as minhas milhares de obrigações, medos e receios.
Eu tenho certeza de que esse sentimento vai acabar comigo na primeira oportunidade. Mas, se for para ter o privilégio de não querer morrer, mesmo que por alguns minutos, eu aceito correr o risco.

*

Não muitos minutos depois, precisei vir correndo atender o meu celular que tocava, o que raramente acontece, já que sempre está no modo silencioso. Dessa vez foi diferente, sempre tiro do modo silencioso quando estou sozinho em casa, pois pode ser a minha mãe, e se eu não atender no primeiro toque, ela pode chamar os bombeiros.
Entretanto, não teve bombeiros, e nem mãe dessa vez.

Passei meses esperando por Henri, e hoje, o larguei sozinho na minha cozinha para atender uma ligação de Karen. A minha sorte é que ele está faminto o suficiente para não cair fora de repente e sem avisar, assim como apareceu.

-Oi...?-Diz, depois de um breve silêncio. De jeito nenhum que eu ia falar primeiro.-Desculpa pela demora, você deve imaginar o quanto isso tudo é difícil para mim.

Assinto, mesmo que não possa me ver. Caminho devagar até a escada, só para ter certeza de que ele não está por perto e que não pode ouvir.

-Tudo bem.-Digo, numa espécie de sussurro.-Não se sinta pressionada.

-Vou fazer o que pediu.

Comemoro silenciosamente quando ouço suas palavras. São muitos acontecimentos milagrosos em um curto período para não comemorar, e um deles é Karen ceder a algo, principalmente relacionado a Henri. Não tenho uma reação imediata, pois eu já não contava mais com isso.

-Valeu! sério, muito obrigado mesmo.

Ouço o barulho da sua tv do outro lado da linha enquanto diz que está fazendo isso pelo futuro do seu bebê.

-Uma pena que você não possa contar para ele.-Diz, mudando seu tom de voz para algo mais calmo. Espero que prossiga.-Que está fazendo todo esse esforço para provar que ele é inocente.

A emoção me domina. Pensar nas diversas possibilidades me deixa com uma breve sensação de vitória, a qual não costumo ter. Sinto que minha fé voltou, e que tudo será resolvido o mais breve possível.
Sorrio.

-Farei isso agora mesmo.-Deixo escapar, afinal, estamos juntos nessa, e Karen com certeza não tem planos de me ferrar. Se sim, não estaria me ajudando. Me despeço, largando o meu celular e voltando correndo para descer as escadas.

FrenesiOnde histórias criam vida. Descubra agora