Capítulo 33

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Laila – 1945

          O vento gelado bate em meu rosto e eu cerro o maxilar, tentando esquecer a dormência em meus membros e a dor que a neve causa ao atingir minha pele impiedosamente. Olho ao redor, em uma tentativa de encontrar algum sinal daquilo que procuro, mas a tempestade está tão forte que mal consigo enxergar alguns palmos à minha frente, então apenas continuo andando enquanto observo o pequeno aparelho de GPS em minhas mãos e sigo na direção que aponta.

          Os galhos secos e congelados estalam sob meus pés e eu preciso tomar cuidado para não escorregar nas pedras molhadas à beira do rio quase completamente congelado. Olho para cima e a única coisa que posso enxergar são penhascos e desfiladeiros dos dois lados, um lugar sem uma segunda rota de fuga caso algo dê muito errado.

          Não que alguma pessoa além de mim esteja se aventurando em um local como esse em um horário muito próximo ao anoitecer. Consigo sentir a temperatura cair cada vez mais enquanto o tempo passa e eu não encontro o que preciso.

          Sinto a irritação crescer em mim, mas tento respirar fundo e me lembrar do meu propósito aqui. Achar o corpo, me certificar de que ele está vivo e inteiro e voltar para a base. Nada muito difícil e demorado. Ao menos é isso que tento dizer para mim mesma.

          Continuo andando devagar até que o aparelho em minhas mãos apita e meu corpo fica ereto, procurando qualquer sinal de que um homem está por perto. Desligo o GPS e apuro os ouvidos, tentando escutar qualquer barulho diferente em meio à ventania que sopra em meu rosto e atrapalha o meu reconhecimento.

          Paro de andar ao ouvir um pequeno gemido, quase confundível com todo o barulho à minha volta, mas definitivamente um gemido. Meus passos suavizam e tomo cuidado para não pisar em nenhum galho ou qualquer coisa que possa fazer barulho enquanto tento seguir o som que já desapareceu. Preciso parar de uma vez e quase levo um susto ao perceber que o homem está aos meus pés, com o corpo virado de bruços e a cabeça levemente virada para o lado, apenas o suficiente para que os sons que saem de sua boca possam ser ouvidos.

          Não consigo enxergar seu rosto de imediato, mas reconheço a dor em seus gemidos fracos e a sua respiração rápida e curta, uma tentativa de se manter respirando. Sua pele visível ganha uma coloração cada vez mais azul e pequenos cristais de gelo se acumulam nela, demonstrando o início de uma hipotermia.

          Praguejo baixinho enquanto me abaixo e tento virar seu corpo para facilitar, mas quem solta um gemido dessa vez sou eu ao reparar a sua situação. Seu braço esquerdo se desprende do seu corpo com esse movimento e o sangue começa a escorrer da enorme ferida, manchando a neve branca e limpa de um vermelho intenso. Tomo menos de cinco segundos para avaliar a situação e perceber que o braço é uma causa perdida, então retiro uma das minhas jaquetas, sentindo o frio aumentar com isso, e rasgo o tecido para deixá-lo grande e poder enrolar seu corpo nele em uma tentativa de estancar o sangue e não deixar que ele morra por conta de um sangramento desenfreado.

          Seus lábios se movem e sons desconexos escapam deles enquanto eu faço uma força razoável e seguro seu corpo em meus braços, nos levantando do chão o mais rápido possível. O peso de um corpo quase morto é muito pior do que o de uma pessoa viva e ele amolece em meus braços a cada passo que dou em direção à saída daquele desfiladeiro.

          Pressiono o tecido em sua ferida, sentindo-o encharcado, mas continuo aumentando a velocidade de meus passos. Ele não vai morrer em meus braços. Não hoje. Finalmente recebi algo para cumprir que não envolve nenhuma morte e vou aproveitar cada segundo disso, nem que eu precise revivê-lo com minhas próprias mãos.

          - Muito bem... Você precisa sobreviver, está entendendo? – Minha voz não passa de um murmúrio e eu continuo olhando para frente, com cuidado para não escorregar e nos machucar. – É apenas um braço. Você não vai morrer por causa de um braço. Já sobreviveu a essa queda infinita, um pouco de sangue não é nada. – Continuo murmurando para mim mesma, mas quase tropeço quando sinto sua mão boa pressionar meu braço e puxar o tecido. É quase o fantasma de um toque, fraco demais para poder realmente ser percebido, mas eu finalmente desvio o olhar para seu rosto.

          Seus olhos estão abertos e me encaram em total horror, como se estivesse vendo um fantasma ou alguma merda do tipo. Penso em ignorar sua reação, mas simplesmente não consigo. Seu olhar me prende e eu paro de andar, sentindo meus braços fraquejarem e quase derrubarem seu corpo na neve. O azul intenso penetra a minha mente e ele pisca uma vez, o que me faz enxergar tudo o que está sentindo no momento. Consigo destrinchar a dor, o desespero, o choque, o reconhecimento e... E algo a mais que não sei decifrar. Ou é o que eu digo a mim mesma.

          Abro a boca várias vezes, tentando encontrar o que falar, mas tudo o que eu sei parece ter desaparecido e eu só consigo ficar parada, tentando não aumentar a pressão dos meus braços ao redor dele quando meu peito inunda de sentimentos e quase me afogam, me impedindo de respirar. Não consigo falar, não consigo andar e muito menos me mover. Os segundos se passam e eu sei que preciso sair daqui. Sei que preciso acelerar os passos e levá-lo até a base, mas simplesmente não consigo.

          Eu também não consigo explicar nada disso. Não sei o que é isso que estou sentindo, não sei o porque de meu corpo estar falhando agora e minha mente estar uma bagunça, mas eu o reconheço. De alguma forma, sei que conheço esse homem de algum lugar e a Hydra não me destruiu o suficiente a ponto de eu esquecer que já tive uma vida antes dessa que estou vivendo agora. Eu sei que a pessoa que estou segurando em meus braços fez parte da minha existência e, de alguma forma, consigo me lembrar. Não sei de que forma isso aconteceu e nem consigo reconhecer o suficiente para saber quem ele é, mas apenas o olhar que me dá é o suficiente para que minhas convicções esmaeçam e eu comece a me perguntar se eu realmente devo levá-lo ao seu destino final.

          Se eu realmente devo seguir em frente com isso e entregá-lo às pessoas que vão destruir seu corpo, sua mente, transformar tudo o que ele é hoje em algo totalmente diferente. Em uma nova arma. Em qualquer coisa, menos em um ser humano.

          Seus lábios se movem, como se estivesse tentando formular uma palavra, mas ele está fraco demais e seus olhos começam a se fechar. Então eu preciso tomar uma decisão. Ele está cada vez mais fraco e, ao aproximar meus dedos da sua jugular, consigo sentir sua pulsação falhando.

          Não tenho tempo e muito menos recursos para tirar nós dois aqui. Estamos longe de toda e qualquer civilização, a cidade mais próxima está a, pelo menos, 100km, totalmente indisponível. Mesmo que carregasse seu corpo durante toda essa distância, ele não sobreviveria pelo tempo necessário ou seríamos pegos no meio do caminho com muita facilidade. Talvez eu possa tentar alcançar algum trem, mas, mesmo assim, é tudo arriscado demais e incerto. E a última coisa que preciso agora é correr em direção a uma morte lenta e dolorosa que sei que me aguarda caso tome a decisão de fugir.

          Olho mais uma vez para baixo, tentando puxar alguma memória, qualquer sinal que demonstre como conheço ele, mas nada surge em minha mente. Solto um palavrão com a ideia que tive, sabendo que é uma merda, mas é a única coisa que posso fazer e que está ao meu alcance.

          - Sinto muito – sussurro, sem saber se ele ainda está consciente o suficiente para entender minhas palavras. – Mas é a única forma de mantê-lo vivo.

          Pressiono os lábios em uma linha fina e seus olhos semicerrados ainda encaram os meus, mas consigo enxergar algo calmo ali. Algo muito próxima de uma paz letárgica e eu sei que eu estou perdendo-o. Conheço bem demais esse olhar para saber que ele está morrendo.

          Acelero meus passos, desesperada para chegar até a base. Sinto que vou me arrepender de ter tomado essa decisão. Talvez deixá-lo morrer seria uma dose de piedade. Algo bom em meio à tantas coisas horríveis que eu já fiz. Mas sou egoísta demais para deixar essa chama que se acendeu em mim, apagar. Não consigo largar seu corpo e o fio de esperança que me conecta a ele.

          Ele é a minha salvação, mas eu sinto que serei sua ruína. E é com esse pensamento que eu continuo seguindo em direção ao lugar que vai se transformar em um tipo de inferno pessoal em sua vida, com um plano quase que completamente formado em minha mente. 

The Project || Bucky Barnes (a editar)Onde histórias criam vida. Descubra agora