O Despertar

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Você conhece as trevas? Sabe o gosto que ela tem? Pode tocá-la, ai dentro do seu coração? Já sentiu-a tomar conta de você, e consumir sua alma até que possa sentir seu gosto amargo na boca? Você já se tornou o monstro que ninguém tem coragem de se tornar?

Cada ser contém dentro de si, uma parcela de escuridão, seja pouca ou não. Eu vi, convivi e abracei a minha, me transformei naquilo que faz os homens se esconderem a noite, que os fazem tremer e procurar alento no colo de suas mães. Eu me tornei um monstro, porque acreditava que isso os salvaria. Que era o certo para fazer aquilo que ninguém mais seria capaz de fazer, abracei as trevas porque o mundo precisa delas. E às vezes é nela que encontramos nosso caminho, e que vemos o mundo, enquanto a luz apenas nos cega.

Este foi o caminho que escolhi, é na escuridão que vivo a mais de séculos, onde fui enclausurada, por anos a fio, até que eu esquecesse tudo, quem eu era, o porquê de estar ali, esqueci-me de meu passado, de minha vida, esqueci-me do ódio, da dor, daquela sede que me contaminava e consumia toda a minha existência. Coisas que eu lembraria conforme minha consciência tomaria forma, coisas que eu lembrei no dia em que minha prisão se tornou o frio latente da morte, a morte que tão bem conhecia.

E foi nas sombras que eu pude escutar sua risada, parecia com vidro se quebrando, o primeiro som que escuto depois de muitos anos, assim como é seguido por um par de olhos vermelhos que brilhavam na escuridão. Eu senti seu gosto, o gosto amargo tão familiar brotar sobre meus lábios, sobre minha garganta seca, e em questão de segundos o som da risada se tornou maior, como se estivesse se partindo, ou gargalhando. Foi quando percebi que aquele som era o mundo à minha volta se quebrando, em mil pedaços. Uma lufada de ar atingiu meu corpo quando senti que entrava em queda, talvez devesse impedi-la, mas meu corpo não obedecia, assim simplesmente senti ele colidir com algo. Não sabia o que era, não sentia nada, não sentia frio ou calor, apenas algo duro e rochoso sobre meu corpo.

Meus olhos se abriam, mas nada havia a minha frente, como se eu tivesse perdido o dom da visão, tentava mover meu corpo novamente, mas ele não funcionava, assim como ao tentar lembrar como respirar me era doloroso. Quem eu era? O que estava fazendo ali? Quem? Quem havia me tirado de minha prisão eterna? Tentei erguer o rosto, mas ainda permaneci imóvel, com o rosto colado sobre as pedras. Foi quando eu senti algo quente, primeiro uma pequena pressão, como se queimasse minha pele, depois algumas pequenas gotas que escorriam pelo meu rosto, seguido pelo cheiro que forçava em meus pulmões. O cheiro de ferrugem que me parecia tão familiar, o mesmo cheiro que fez as minhas entranhas queimar como brasas, uma necessidade crescente em meu interior despertava e parecia querer me queimar por dentro. Dessa vez o líquido atingiu meus lábios, passando a sentir o gosto metálico sobre minha garganta e o choque que isso causou.

Senti todo meu ser arde, era como se meu corpo tivesse despertado novamente, o ar sendo sugado mais uma vez, sentindo um cheiro além da ferrugem, um cheiro familiar ao qual eu não conseguia distinguir de tantos. E naquele momento, um doce som ecoou em minha mente, um nome, meu nome. Alessia. Meus olhos se abriam, dessa vez conseguindo distinguir na escuridão uma sombra, tão negra que parecia ser as próprias trevas, acima de mim. Sim, meu nome era Alessia Galahti, e eu havia renascido. Mas não como a maioria pensa, não havia bater de coração, não havia necessidade de respirar, não havia nada. Eu estava morta, morta por séculos e ainda sim, viva, sentindo a sede me alastrar e me contaminar. Sim, agora eu lembrava, eu era um não vivo.

E assim como meu nome, lentamente as memórias de meu passado, as memórias que tanto queria esquecer invadiam minha mente.

Lembro de terras geladas, do frio cortante sobre as masmorras e o lento deslizar da neve sobre o céu azul. Eu me lembro, como se fosse uma outra vida, como se vagase em uma névoa distante, mas ainda sim, viva, uma visão mais distinta que o salão ao qual meu corpo está. Eu tinha seis anos novamente, usava um vestido de algodão tingido de azul que acentua as cores de meus olhos, minhas mãos pequenas estavam a brincar com um punhado de neve, enquanto um manto grosso de pele de lobo pendia sobre meus ombros, protegendo-me do frio. Estava fazendo um pequeno amontoado na neve, apesar das luvas grossas lembro-me de ter de parar as vezes para aquecer minhas mãos.

Vínculos de Sangue - Cronicas dos Filhos das TrevasOnde histórias criam vida. Descubra agora