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TRÊS DIAS DEPOIS DA tragédia levaram-me para o engenho do meu avô materno. Eu ia ficar ali morando com ele. Um mundo novo se abrira para mim. Lembro-me da viagem de trem e de uns homens que iam conosco no mesmo carro. O tio Juca, que me fora buscar, contava a história, afirmando que o meu pai estava doido. Todos olhavam para mim com um grande pesar.

— Eu avalio como não está o coronel Cazuza — dizia um deles. — Naquela idade, a sofrer destas coisas!

Compreendi que falavam do meu avô.

— Um homem de bem como ele, e tão infeliz com a família!

O meu tio Juca ficava calado. E a conversa mudava para o inverno, que corria bem, para os partidos de cana. E depois, para a política.

O trem era para mim uma novidade. Eu ficava na janelinha do vagão a olhar os matos correndo, os postes do telégrafo, e os fios baixando e subindo. Quando chegava numa estação, ainda mais se aguçava a minha curiosidade. Passavam meninos com roletes de cana e bolos de goma, e uma gente apressada a dar e a receber recados. E uma porção de pobres a receber esmolas. Uma mulher chegou-se para mim, e toda cheia de brandura:

— Que menino bonitinho! Onde está a sua mãe, meu filho?

Tive medo da velha. E a saudade de minha mãe me fez chorar. A pobre saiu espantada, dizendo para os outros que eu a tinha estranhado. O meu tio levou-me para beber qualquer coisa. E a viagem continuou a me divertir como dantes.

— Agora vamos saltar — disse-me ele.

E na primeira parada deixamos o trem, com grande saudade para mim. Na estação estava um pretinho com um cavalo, trazendo umas esporas, um rebenque e um pano branco. O meu tio estendeu o pano branco na anca do animal, montou, e o pretinho me sacudiu para a garupa. Era o meu primeiro ensaio de equitação.

— O engenho fica ali perto.

Eu ia reparando em tudo, achando tudo novo e bonito. A estação ficava perto de um açude coberto de uma camada espessa de verdura. Os matos estavam todos verdes, e o caminho cheio de lama e de poças d'água. Pela estrada estreita por onde nós íamos, de vez em quando atravessava boi. O meu tio me dizia que tudo aquilo era do meu avô. E com pouco mais avistava-se uma casa branca e um bueiro grande.

— É ali o engenho, mas nós temos que andar um bocado.

A minha mãe sempre me falava do engenho como de um recanto do céu. E uma negra, que ela trouxera para criada, contava tantas histórias de lá, das moagens, dos banhos de rio, das frutas e dos brinquedos, que me acostumei a imaginar o engenho como qualquer coisa de um conto de fadas, de um reino fabuloso.

Quando cheguei, com o meu tio Juca, no pátio da casa-grande, o alpendre estava cheio de gente. Desapeamos, e uma moça muito parecida com a minha mãe foi logo me abraçando e me beijando. Sentado em uma cadeira, perto de um banco, estava um velho a quem me levaram para receber a bênção. Era o meu avô.

Uma porção de moleques me olhavam admirados. E andei de mão em mão, olhado e examinado da cabeça aos pés. Levaram-me para a cozinha. As negras queriam ver o filho de d. Clarisse. Foi uma festa na casa.

— Vai mostrar o menino à tia Galdina!

E me conduziram para um quarto na dependência da casa-grande. Era uma camarinha escura, com cheiro de coisa abafada. Lá dentro estava uma negra velha deitada.

— Tia Galdina, olhe aqui o menino de d. Clarisse. Chegou com doutor Juca, de Recife.

A velha me chamou para perto da cama, me olhou de pertinho como um míope que quisesse ler com atenção, e caiu num choro agoniado.

— É a cara da mãe, meu Deus!

Saí chorando do quarto da velha. A moça que se parecia com a minha mãe, e que era a sua irmã mais nova, me levou para mudar a roupa.

— Agora vou ser a sua mãe. Você vai gostar de mim. Vamos, não chore. Seja homem.

E me abraçou, e me beijou, com uma ternura que me fez lembrar os beijos e os abraços de minha mãe. Da minha maleta tirou um pijama e me vestiu, me penteou os cabelos assanhados.

— Vá brincar com os moleques no copiá.

Os moleques estavam me esperando mas não se aproximavam de mim. Desconfiados, eles olhavam para o meu pijama, para os meus alamares, encantados, talvez, com a minha pompa. Porém aos poucos foram se chegando, que pela tarde já estavam de intimidade. E fomos à horta para tirar goiabas e jambos. O que chamavam de horta era um grande pomar. Muito de minha infância eu iria viver por ali, por debaixo daquelas laranjeiras e jaqueiras gordonas.

O meu sono desta noite foi curto. De manhã me levaram para tomar leite ao pé da vaca. Era um leite de espuma, ainda morno da quentura materna. O meu avô andava vestido num grande e grosso sobretudo de lã, falando com uns, dando ordens a outros. Uma névoa como fumaça cobria os matos que ficavam nos altos. Os moleques das minhas brincadeiras da tarde, todos ocupados, uns levando latas de leite, outros metidos com os pastoreadores no curral. Tudo aquilo para mim era uma delícia — o gado, o leite de espuma morna, o frio das cinco horas da manhã, a figura alta e solene de meu avô.

Tio Juca me levou para tomar banho no rio. Com uma toalha no pescoço e um copo grande na mão, chamou-me para o banho.

— Você precisa ficar matuto.

Descemos uma ladeira para o Paraíba, que corria num pequeno fio d'água pelo areal branco e extenso.

— Vamos para o Poço das Pedras.

Pouco mais adiante, debaixo de um marizeiro, de copa arrastando no chão, lá estava uma destas piscinas que o curso e a correnteza do rio cavavam nas suas margens. E foi aí, com meu tio Juca, que bebeu, antes de seu banho, um copo cheio de remédio para o sangue, dormido no sereno, que entrei em relação íntima com o engenho de meu avô. A água fria de poço, naquela hora, deixou-me o corpo tremendo. Meu tio então começou a me sacudir para o fundo, me ensinando a nadar.

Daquele banho ainda hoje guardo uma lembrança à flor da pele. De fato que para mim, que me criara nos banhos de chuvisco, aquela piscina cercada de mata verde, sombreada por uma vegetação ramalhuda, só poderia ser uma coisa do outro mundo.

Na volta, o tio Juca veio dizendo, rindo-se:

— Agora você já está batizado.

Quando chegamos em casa, o café estava pronto. Na grande sala de jantar estendia-se uma mesa comprida, com muita gente sentada para a refeição. O meu avô ficava do lado direito e a minha tia Maria na cabeceira. Tudo o que era para se comer estava à vista: cuscuz, milho cozido, angu, macaxeira, requeijão. Não era, porém, somente a gente da família que ali se via. Outros homens, de aspecto humilde, ficavam na outra extremidade, comendo calados. Depois seriam eles os meus bons amigos. Eram os oficiais carpinas e pedreiros, que também se serviam com o senhor de engenho, nessa boa e humana camaradagem do repasto.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora