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UM MOLEQUE CHEGOU GRITANDO:

— O partido da Paciência está pegando fogo!

Tinha sido faísca do trem, na certa.

O povo todo correu para lá, com enxadas, foices, pedaços de pau. Via-se o fumaceiro do outro lado do rio, tomando o céu todo.

— Mande chamar o pessoal do eito — gritava o meu avô.

E com pouco mais chegavam os cabras em disparada, para os lados do partido. O fogo ganhava o canavial com uma violência danada. As folhas da cana estalavam como taboca queimando. Parecia tiroteio de verdade.

— Corta o fogo no Riacho do Meio!

Era o único jeito de atalhar o incêndio para salvar o resto do partido, meter a enxada e a foice no riacho que cortava o canavial, abrindo aceiros de lado a lado.

A casa de palha do negro Damião, o fogo comeu num instante. Nem tiveram tempo de tirar os trastes. O vento soprava, sacudindo faíscas a distância. Mil línguas de fogo devoravam as canas maduras, com uma fome canina. E o vento insuflando este apetite diabólico, com um sopro que não parava. Mas os cabras do eito estavam ali para conter aquela fúria. E o meu tio Juca no meio deles. As enxadas tiniam no massapê, as foices cantavam nas touceiras de cana, abrindo os aceiros para esbarrar a carreira das chamas. E davam no fogo com galhos de mato verde, gritando como se estivessem numa batalha corpo a corpo.

Ficávamos de longe, vendo e ouvindo as manobras e o rumor do combate. Os meus olhos choravam com a fumaça, e o cheiro de mel de cana queimada recendia no ar. Descia gente das caatingas para um adjutório. E com o escurecer, o fogo era mais vermelho.

Agora as chamas subiam mais para o alto, porque o vento abrandava. Os cabras pisavam por cima das brasas, chamuscavam os cabelos, nessa luta braço a braço com um inimigo que não se rendia.

— Olha a casa de Zé Passarinho pegando fogo!

Zé Guedes correu para dentro das chamas, e voltou com a velha Naninha, entrevada, nos braços, sacudindo-a no chão como um saco de açúcar.

— Ataca o fogo — gritava meu tio, de panavueiro na mão.

O meu tio Juca crescia para mim, neste arranco de coragem com seus cabras. Estava metido com eles no mesmo perigo e no mesmo aperreio.

Vinham chegando moradores de Maravalha e de Taipu. E eram para mais de quinhentos homens que enfrentavam o inimigo desesperado. Não passaria mais do riacho, porque todo ele estava tomado de aceiros. E gente com galhos nas mãos para esperar o avanço. O vento abandonara o aliado no campo da luta. E só se via gente de pé queimado, de cara tisnada, de olhos vermelhos, de roupas em tiras. Zé Guedes com os peitos em chaga viva. E o pretume do canavial fumaçando.

— É preciso deixar gente nos aceiros a noite toda.

No engenho, o meu avô botava jucá nos feridos. A destilação se abria para uma bicada. A boca de fogo podia fazer mal. E o eito esperava por eles de manhãzinha.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora