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NOS DIAS DE FESTA tiravam um pano que cobria o oratório preto de jacarandá e acendiam as velas dos castiçais. O quarto dos santos ficava aberto para todo mundo. Não havia capela no Santa Rosa como nos outros engenhos, talvez porque ficassem pertinho dali as duas matrizes do Pilar e de São Miguel. E mesmo o meu avô não era um devoto. A religião dele não conhecia a penitência e esquecia alguns dos mandamentos da lei de Deus. Não ia às missas, não se confessava, mas em tudo que procurava fazer lá vinha um "se Deus quiser" ou "tenho fé em Nossa Senhora". A minha tia Maria cuidava de ensinar a mim e aos moleques as rezas que ainda hoje sei. O meu avô, nunca o vi rezando. Com ele, porém, contavam os padres das duas freguesias nas suas festas e nas necessidades. Ele, que morria pelas suas matas, mandara uma vez que os carpinas botassem abaixo a madeira que o padre Severino quisesse para as obras da igreja.

Quando acendiam as velas do quarto dos santos, nós íamos olhar as estampas e as imagens. Havia um Menino Jesus que era o nosso encanto, um menino bonito com os olhos azuis da prima Lili e um sorriso bonzinho na boca. Trazia numa das mãos um longo bastão de ouro e na outra a bola do mundo.

— Se aquela bola caísse, o mundo se acabava.

Mas o nosso menino, vestido de manto azul estrelado, trazia por debaixo de suas vestes uma rolinha bicuda de criança. E nós levantávamos o manto de quando em vez, espantados que a gente do céu também precisasse daquelas coisas.

— Os meninos estão bulindo no santuário.

Vinham brigar com a gente.

As estampas das paredes contavam histórias de mártires. Um são Sebastião atravessado de setas, com os seus milagres em redor do quadro. O anjo Gabriel com a espada no peito de um diabo de asas de morcego. São João com um carneirinho manso. São Severino fardado, estendido num caixão de defunto. Um santo comprido com uma caveira na mão. Os moleques então nos mostravam uma santa mulata com uma criança no braço, uma que tinha no rosto a marca de ferro em brasa.

— Ela era uma escrava — contavam os moleques. — E a senhora queimou o rosto dela com um garfo quente.

Eu pensava sempre na tia Sinhazinha quando os moleques falavam nesta senhora malvada.

Mas o quarto dos santos vivia fechado. Não havia no engenho o gosto diário da oração. Talvez que o exemplo de meu avô, justo e bom como ele era, mas indiferente às práticas religiosas, arrastasse os seus a esses afrouxamentos de devoção. Pagava-se muita promessa, dava-se muito dinheiro para as festas de Nossa Senhora. Mas nunca vi ninguém do engenho numa mesa de comunhão, nem mesmo a tia Maria. O povo pobre do eito só se confessava na hora da morte, quando, à revelia deles, mandavam chamar o padre às carreiras. E no entanto não tiravam Nossa Senhora da boca e faziam novenas a propósito de tudo.

A não ser a tia Maria, que me ensinava o padre-nosso, ninguém ali me falava de catecismo. A religião que eu tinha, vinha ainda das conversas com a minha mãe. Sabia que Deus fizera o mundo, que havia céu e inferno, e que a gente sofre na Terra por causa de uma maçã. Os moleques também não sabiam mais do que eu. Nas missas de festa que assistíamos na vila, pouco víamos o padre no altar. Andávamos pelos botequins no capilé, ou tirando a sorte de papeizinhos enrolados.

Pela semana santa contavam-nos as malvadezas dos judeus com Nosso Senhor — da coroa de espinhos, da lançada no coração e do sangue que correu da ferida e abriu os olhos de um cego que ficara por baixo da cruz. Na Sexta-Feira Santa só se comia uma vez no engenho. Vinha peixe fresco da cidade e parentes de outros engenhos: comia-se muito mais do que nos outros dias. As negras na cozinha falavam do martírio de Jesus com uma compaixão de dentro da alma, e diziam que se o padre na missa do sábado não achasse a aleluia, o mundo se acabaria de uma vez. Os moradores vinham então pedir o jejum, em bandos. Davam-lhes bacalhau e farinha. Eles saíam com a mulher e os filhos rotos, de sacos nas costas, como se estivessem fazendo um número de via-sacra. O dia todo era triste. O trem de ferro não corria na linha.

Às vezes vinha ao engenho por este tempo uma velha Totonha, que sabia uma Vida, Paixão e Morte de Jesus Cristo em versos e nos deixava com os olhos molhados de lágrimas com a sua narrativa dolorosa.

A velha Sinhazinha dizia que semana santa boa era a do Itambé. O padre Júlio beijava os pés dos pobres, fazia procissão de encontro e um sermão de lágrimas que todo mundo chorava na igreja. As negras ficavam pela cozinha, sentadas, conversando em cochichos sobre o dia. Não se tomava banho de rio, para não se ficar nu na frente um do outro. Não se judiava com os animais. Não se chamava nome a ninguém. Um canário que eu tinha pegado me fizeram soltar. E as nossas conversas avançavam até em corrigenda à vontade de Deus. Nós achávamos que Jesus Cristo devia ter liquidado todos os judeus e tomado conta de Jerusalém. Não atinávamos com a grandeza do sacrifício. Queríamos a vitória material sobre os seus algozes.

Abriam, por esse tempo, o quarto dos santos. O santuário coberto de preto e as estampas viradas todas para a parede. Os santos estavam com vergonha de olhar para o mundo.

Era assim a religião do engenho onde me criei.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora