39

68 5 1
                                    

TINHA UNS 12 ANOS quando conheci uma mulher, como homem. Andava atrás dela, beirando a sua tapera de palha, numa ânsia misturada de medo e de vergonha. Zefa Cajá era a grande mundana dos cabras do eito. Não me queria.

— Vá se criar, menino enxerido.

Mas eu ficava por perto, conversando com ela, olhando para a mulata com vontade mesmo de fazer coisa ruim. Ficou comigo uma porção de vezes. Levava as coisas do engenho para ela — pedaços de carne, queijo roubado do armário; dava-lhe o dinheiro que o meu avô deixava por cima das mesas. Ela me acariciava com uma voracidade animal de amor: dizia que eu tinha gosto de leite na boca e me queria comer como uma fruta de vez. Andava magro.

— Este menino está com vício.

Era mesmo um vício visguento aquele dos afagos de Zefa Cajá. Saía do café para a casa dela, ia depois do almoço e depois do jantar. Foram dizer ao meu avô:

— O menino não sai da casa da rapariga.

O velho José Paulino então passou-me uns gritos:

— Se não fosse pra semana pro colégio dava-lhe uma surra.

Mas não fez o barulho que eu esperava. Para estas coisas o velho olhava por cima. A sua vida também fora cheia de irregularidades dessa natureza. Quando brigou com o tio Juca por causa da mulata Maria Pia, ouvi a negra Generosa dizendo na cozinha:

— Quem fala! Quando era mais moço, parecia um pai-d'égua atrás das negras. O seu Juca teve a quem puxar.

Mas eu tinha que pagar o meu tributo antecipado ao amor. Apanhei doença do mundo. Escondi muitos dias do povo da casa-grande. Ensinaram-me remédios que eu tomava em segredo na beira do rio. Dormia no sereno a goma com açúcar para os meus males. Não melhorava, tinha medo de urinar com as dores medonhas. E por fim souberam na casa-grande. Foi um escândalo:

— Daquele tamanho, e com gálico!

Botaram Zefa Cajá na cadeia, e eu, desconfiado, com vergonha de olhar o povo. Fiquei um caso de todos os comentários, de risadas. O meu tio Juca tomou conta do tratamento. Onde eu chegava, lá vinham com indiretas:

— Menino danado!

E comecei a envaidecer-me com a minha doença. Abria as pernas, exagerando-me no andar. Era uma glória para mim essa carga de bacilos que o amor deixara pelo meu corpo imberbe. Mostravam-me às visitas masculinas como um espécime de virilidade adiantada. Os senhores de engenho tomavam deboche de mim, dando-me confiança nas suas conversas. Perguntavam pela Zefa Cajá, chamavam-na de professora.

— Puxou ao avô!

E riam-se, como se fosse uma coisa inocente este libertino de 12 anos.

O moleque Ricardo pegara na mesma fonte a sua doença de homem. Estava entrevado na rede, sem dar um passo. Eu tinha medo de ficar como ele. E me precavia de tudo, prendendo-me aos remédios, em escravidão. O meu companheiro pagara mais caro de que eu o seu imposto de masculinidade. Curava-se com os remédios de casa: as garrafas de raiz de mato com aguardente de cana.

— A minha foi pior do que a sua: é de cabresto.

Parecia um orgulho da ruindade de cada um. O tio Juca não dava tréguas. Levava-me aos banhos para o tratamento rigoroso de seringa. Bebia refresco de pega-pinto em jejum, chá de urinana de manhã à noite. E os diuréticos me faziam vergonha:

— Mijou na cama!

E era um debique de todo mundo.

— Isto é lá homem! — dizia o velho José Paulino, quando soube da minha fraqueza.

A negra França lavava os panos da minha doença. Batia no rio as minhas imundícies purgadas.

Com um mês mais, já estaria em ponto de ir para o colégio. A doença do mundo me operara uma transformação. Via-me mais alguma coisa que um menino; e mesmo já me olhavam diferente. Já não tinham para mim as condescendências que se reservam às crianças. As negras faziam-me de homem. Não paravam as conversas quando eu chegava. Enxeriam-se. Procurava as lavadeiras de roupa pela beira do rio. Ficavam quase nuas, batendo os panos nas pedras. Tomava banho despido junto delas, olhando as suas partes relaxadamente descobertas.

— Sai daí, menino safado!

Mas riam-se, gostando da curiosidade.

Agora o engenho oferecia-me o amor por toda a parte: na senzala, na beira do rio, nas casas de palha. Os moleques levavam-me para as visitas por debaixo dos matos, esperando a vez de cada um. Na casa-grande os homens achavam graça de tanta libertinagem.

— Menino vadio! Só pai de chiqueiro!

Eu ficava a pensar na tia Maria, se ela soubesse de tudo aquilo. Longe de mim, parecia um vulto de uma outra vida, a minha tia. Era um outro o menino que ela criara com tanto dengue. O sexo vestira calças compridas no seu Carlinhos. E o coração de um menino depravado só batia ao compasso de suas depravações. Estava até esquecendo a doce ternura de minha segunda mãe. Corria os campos como um cachorro no cio, esfregando a minha lubricidade por todos os cantos. Os moradores se queixavam:

— Ninguém pode deixar as meninas em casa com o seu Carlinho.

João Rouco deu-me uma carreira por causa do filho pequeno, que eu quis pegar.

Em junho iria para o colégio. Estava marcado o dia de minha partida.

— Lá ele endireita.

Recorriam ao colégio como a uma casa de correção. Abandonavam-se em desleixos para com os filhos, pensando corrigi-los no castigo dos internatos. E não se importavam com a infância, com os anos mais perigosos da vida. Em junho estaria no meu sanatório. Ia entregar aos padres e aos mestres uma alma onde a luxúria cavara galerias perigosas. Perdera a inocência, perdera a grande felicidade de olhar o mundo como um brinquedo maior que os outros. Olhava o mundo através dos meus desejos e da minha carne. Tinha sentidos que desejavam as botas do Polegar para as suas viagens.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora