29

47 5 1
                                    

JÁ ESTAVA MAIOR, QUANDO comecei a sofrer de puxado. Uma moléstia horrível que me deixava sem fôlego, com o peito chiando, como se houvesse pintos sofrendo dentro de mim. Tenho uma impressão de terror das minhas noites de asmático, dos meus dias compridos em cima da cama, dos vomitórios abomináveis que me davam. Eram acessos de mais de três dias. Depois a convalescença, sem poder pisar no terreiro, sem ir ao alpendre por causa do mormaço, do sereno, dos chuviscos. Não comia frutas, não tocava em coco, assavam-me a cana para chupar, num resguardo rigoroso de mulher parida. Mandavam ao meu quarto, para brincar comigo, os moleques menores, mas eles se enjoavam daquela companhia de enfermo e me deixavam sozinho, me abandonavam. E, sozinho, começava a vencer o tempo com as minhas cismas de menino.

Os primos tinham chegado do colégio, mudados, nos primeiros dias.

— Menino só endireita no colégio — era como todo mundo julgava essa cura milagrosa.

Com pouco mais voltaram a ser os mesmos diabos de antigamente.

O engenho estava moendo. Do meu quarto ouvia o barulho da moenda quebrando cana, a gritaria dos cambiteiros, a cantiga dos carros que vinham dos partidos. A fumaça cheirosa do mel entrava-me de janela adentro. O engenho todo na alegria rural da moagem. E o diabo daquele puxado tomando-me a respiração, deixando-me sem ar e com gosto amargo na boca.

Olhava para as réstias que as telhas de vidro espalhavam pelo quarto. Elas iam fugindo devagarinho, até subirem pelas paredes, redondas ou ovais, e, enfim, desapareciam, quando não havia mais sol no telheiro. Às vezes vinham de cima, como uma flecha, e se enfincavam num canto. Eu tinha visto esse jato de luz nas estampas do santuário. Diziam que era o Espírito Santo entrando em Nossa Senhora. O Menino Jesus havia saído dessa réstia de sol vinda do céu. Jesus viera do céu, mas os outros meninos não seriam como ele. Eram os homens que faziam os meninos. Tudo igual ao que a gente via nos cercados.

O meu avô passava no meu quarto para me ver: não tinha febre, dizia, e ia-se embora. A febre, para ele, era o grande mal, e o seu grande remédio as lavagens. As moléstias do engenho tinham o seu diagnóstico e a sua medicina certa: sarampo, bexiga-doida, papeira, sangue-novo. Saindo dali era febre. O velho José Paulino tratava de tudo, fazia sinapismos de mostarda, dava banhos quentes, óleo de rícino, jacaratiá para vermes. Curava assim os negros, os netos, os trabalhadores. E lancetava furúnculos. Uma vez um carro de boi passara por cima do pé de um carreiro, esmigalhando o dedo. O meu avô cortou à tesoura aquele pedaço de carne dependurada, botou tintura de jucá na ferida e amarrou com tiras de camisa velha o pé do Chico Targino. Para o meu puxado prescreviam vomitórios de cebolas-cecém. A minha tia Maria ficava comigo enquanto eu me extenuava nos vômitos desesperados. O puxado, porém, só passava no seu tempo. Piava no peito até quando bem quisesse.

As noites pareciam-me uma eternidade. Ficava acordado na ânsia miserável do acesso, horas seguidas, de olhos fechados, com o meu medo do escuro. Depois via a madrugada entrando pelas telhas-vãs do quarto, e ouvia os passos de meu avô andando pela calçada, para o seu banho frio das quatro horas. O rumor do curral, o apito do engenho chamando o povo para o trabalho, me pareciam uma novidade de todos os dias. Mais tarde os pássaros cantavam as suas matinas no gameleiro.

Essas noites de puxado envelheciam a minha meninice, mas obrigavam os meus olhos cansados da escuridão a esperarem extasiados as madrugadas. Quando o sol se abria, chegavam as réstias no meu quarto. Havia mesmo uma em cima de minha cama, bem redonda, junto dos meus travesseiros. Botava as mãos para lhe sentir a quentura, e via as nuvens passando por ela às carreiras ou devagar. Devagarinho lá iam deixando o meu leito de doente; faziam apenas uma visita ao enfermo, e já estavam com a metade pela barra da cama, e caíam no chão, onde se iam arrastar o dia inteiro.

Eu entretinha o meu puxado com esse cinema, em que o sol e as nuvens faziam-se de artistas.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora