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O MEU AVÔ COSTUMAVA à noite, depois da ceia, conversar para a mesa toda calada. Contava histórias de parentes e de amigos, dando dos fatos os mais pitorescos detalhes.

— Isto se deu antes do cólera de quarenta e oito ou depois do cólera de cinquenta e seis.

Eram os sinistros marcos de suas referências. O seu grande motivo era, porém, a escravidão.

— Tio Leitão dava nos negros como em bestas de almanjarra. Tinha uma escravatura pequena: um negro só para mestre de açúcar, purgador, pé de moenda.

— O major Ursulino de Goiana fizera a casa de purgar no alto, para ver os negros subindo a ladeira com a caçamba de mel quente na cabeça. Tombavam cana com a corrente tinindo nos pés. Uma vez um negro dos Picos chegou na casa-grande do major, todo de bota e de gravata. Vinha conversar com o senhor de engenho. Subiu as escadas do sobrado oferecendo cigarros. Estava ali para prevenir das destruições que o gado do engenho fizera na cana dos Picos. Ele era o feitor de lá. O seu senhor pedira para levar este recado. O major calou-se, afrontado. Mandou comprar o negro no outro engenho. Mas o negro só tinha uma banda escrava. Pertencendo a duas pessoas numa partilha, um dos herdeiros libertara a sua parte. Então o major comprou a metade do escravo. E trouxe o atrevido para a sua bagaceira. E mandou chicoteá-lo no carro, a cipó de couro cru, somente do lado que lhe pertencia.

Esta história da banda-forra, o meu avô contava para mostrar a ruindade do velho Ursulino. Era raro o senhor de engenho de coração duro para os escravos. Os dele vestiam e comiam com fartura.

— Negro só mesmo com barriga cheia. Era verdade que havia alguns que pediam cipó de boi. Ali mesmo no Santa Rosa, uma escrava botara uma erva venenosa no caldeirão de comida da escravatura. Quase que morria tudo de dor de barriga. Tinha-se inimizado com uma crioula por causa de um negro, e queria matar o resto. Os jornais, na abolição, falavam de senhores de engenho que matavam negros de relho. Ninguém hoje mata boi de macaca. Queria-se o negro gordo para o trabalho e a revenda. Não se ia botar fora um conto nem dois de réis. Aqui comiam de estragar, e na várzea, só Ursulino botava negro na corrente. Também a escravatura dele era uma desgraça. Quem tinha o seu negro fujão, vendia pro eito do Itapuá. Mandavam-se escravos para o Ursulino como hoje se bota menino na Marinha — para amansar. E a gente do Partido Liberal botou o nome em Ursulino de "barão do couro cru". Quando veio o Treze de Maio, fizeram um coco no terreiro até alta noite. Ninguém dormiu no engenho, com zabumba batendo. Levantei-me de madrugada, pra ver o gado sair para o pastoreador, e me encontrei com a negrada, de enxada no ombro: iam para o eito. E aqui ficaram comigo. Não me saiu do engenho um negro só. Para esta gente pobre a abolição não serviu de nada. Vivem hoje comendo farinha seca e trabalhando a dia. O que ganham nem dá para o bacalhau. Os meus negros enchiam a barriga com angu de milho e ceará, e não andavam nus como hoje, com os troços aparecendo. Só vim a ganhar dinheiro em açúcar com a abolição. Tudo o que fazia dantes era para comprar e vestir negros.

— Cabeça de Puque ensinava os meninos de Manuel Antônio do Bonito. Um dia desapareceu um dinheiro de ouro do velho. Botou-se logo pra cima do mestre. E judiaram com o homem de tal forma, pra descobrir o roubo, que o deixaram pra morrer. Dias depois prenderam um pedreiro em Itabaiana trocando dinheiro de ouro na feira. Então tudo ficou descoberto. O pedreiro trabalhava retelhando o sobrado do Bonito quando viu o velho Manuel Antônio botando um saquinho debaixo duma galinha choca, deitada. Era ali a burra do engenho. E por causa desta surra em Cabeça de Puque o senhor de engenho andou pelos matos até o Partido Conservador subir.

— Dom Pedro chegou no Pilar uma tarde. Ninguém esperava por ele. A casa da Câmara estava fechada. Era certo que estaria na vila no outro dia, mas o imperador só andava correndo, cansando os cavalos. Quando a cavalhada entrou na rua grande, o povo todo correu pra ver. Dom Pedro parou defronte da casa da Câmara. Vieram abrir. Tio Henrique, vereador, tremia de medo. Não havia nem uma cadeira lá dentro. Estava tudo no marceneiro se envernizando. A grande sala do júri, vazia. Dom Pedro subiu com o seu grande chapéu do chile, olhou para os cantos: não viu móveis. Sacudiu o chapéu no chão e deitou-se na rede do pedreiro que estava limpando a casa para a festa. O presidente da província mandou prender o tio Henrique pelo desastre.

Estas histórias do meu avô me prendiam a atenção de um modo bem diferente daquelas da velha Totonha. Não apelavam para a minha imaginação, para o fantástico. Não tinham a solução milagrosa das outras. Puros fatos diversos, mas que se gravavam na minha memória como incidentes que eu tivesse assistido. Era uma obra de cronista bulindo de realidade.

A história inteira da família saía nestes serões de depois da ceia. O avô do velho José Paulino viera de Pasmado, com um irmão padre, para São Miguel. Fundara ali pelas várzeas e caatingas do Paraíba uma grande prole de senhores de engenho. Espalhara sangue de branco por entre os caboclos daquelas redondezas. Por isto a gente do Taipu falava de branquidade com a boca cheia.

— Hoje em dia está tudo virando camumbembe — dizia o meu avô. — Este negócio de família já não é dote pra moça casar.

Ele tinha o orgulho da casta, a única vaidade daquele santo que plantava cana.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora