EU FICAVA COM OS mestres de ofício vendo os seus trabalhos. Os tanoeiros com as formas e as cubas, os carpinas com as rodas de carro ou lavrando as cumeeiras. A enxó descascava os paus-d'arco, e as plainas iam aos poucos desbastando, alisando as tábuas de cedro. Seu Firmino carpina, Pixito tanoeiro, seu Rodolfo mecânico tomavam conta da casa do engenho na vaga da safra. Tiravam os seis meses de inverno raspando madeira e batendo ferro. Gostavam de mim. Mexia nos seus instrumentos, e nem se importavam com as minhas travessuras.
O que, porém, mais me prendia aos meus amigos, eram as suas conversas e confissões. O seu Rodolfo sabia de muita coisa. Vivia consertando engenhos desde menino. E de toda a parte trazia uma história. Trabalhara para um marinheiro no Engenho do Meio, para o major Ursulino do Itapuá, para o dr. Pedro do Miriri. Os negros de Ursulino toda manhã levavam uma chibatada, na porta da senzala, para esquentar o corpo. O marinheiro dormia na rede, com a garrafa de cana nos braços. A destilação do engenho só trabalhava para a gente da casa-grande. E o seu Rodolfo falava também de mulheres. Quando estivera no Jaburu, apanhara uma carga de gálico que lhe deixara o corpo numa chaga. O mestre Firmino parava com o serviço para ouvir o fim da história.
Eu passava o dia inteiro rondando os oficiais nas suas confidências. Contavam a história de uns carpinas num engenho do Brejo.
— O senhor de engenho só mandava para eles bacalhau, na janta e no almoço. Passavam o dia inteiro bebendo água com a boca seca. Um dia um deles disse para o negro que não gostava de bacalhau, que não aguentava mais aquilo. No outro dia o tabuleiro com a comida chegou: era peru. E peru de tarde. E a semana toda, peru. Num domingo, o mestre saiu para dar umas voltas nos arredores. Viu um negro com uma porção de urubus nas costas:
— O que é isto, moleque?
— É peru pros carpinas.
Os oficiais anoiteceram e não amanheceram na propriedade. E rebentou ferida pelo corpo deles. Estiveram para morrer um tempão.
— O velho Duda do Riachão não gostava de mulheres. Uma filha fugira com um cambiteiro. Casou a segunda vez. E sempre que a mulher estava para dar à luz, ficava o velho beirando o quarto. Chorava menino lá dentro. Batia na porta para a parteira, sabendo do sucedido. E se a notícia era ruim, o velho Duda só fazia dizer: "Acabai com ela."
— O capitão Quincas, irmão do velho José Paulino, tinha uma mulher chamada Calu. Morava no sítio de sinhá Germínia. Era uma cabrocha bonita. Ele tirara a menina da família dum morador do Maravalha. Da irmandade, o capitão Quincas parecia o mais genista. O seu tio, Manuel César do Taipu, tinha fama de brabo. Falava gritando com todo mundo. Uma vez umas bestas do Santa Rosa fugiram para o engenho dele. O velho Manuel César mandou botar os animais na almanjarra de manhã à noite. Os bichos estavam comendo grosso. Ninguém no Santa Rosa tinha coragem de ir buscar. O coronel José Paulino respeitava o tio. Tinha medo. O capitão Quincas quando soube, saiu. Entrou no engenho adentro, parou a moagem e cortou os arreios da almanjarra. O velho Manuel César comeu calado o atrevimento. Era assim o irmão mais moço do coronel.
Pois bem, a cabrocha dera corda ao feitor. O homem soube da coisa. Um dia, estavam na planta da cana, aqui, dos cajueiros. A escravatura no eito. O feitor Salvino de lado. O capitão chamou o cabra para perto dele. Os negros levantaram a cabeça do serviço. "Cabra atrevido!" E o rebenque cortou o rosto. Pegaram-se os dois por cima das canas verdes. Rolaram no chão. Brigaram muito. Os negros correram. O capitão Quincas ficara estendido com uma facada no vão esquerdo. O cabra se entregou. Quiseram matá-lo de peia. O coronel mandou pra cadeia. O partido dele estava de baixo, e no júri foi um serviço. O velho Manuel César protegia o assassino do sobrinho. Estava se vingando da afronta. O povo do Santa Rosa vendia o engenho, mas o cabra não saía livre. Pegou trinta anos em Fernando.
Na hora do almoço vinham chamar os mestres. Na mesa nem pareciam aqueles das histórias: todos calados, de cabeça baixa, comendo. Ficava a olhar para eles, naquela boa humildade de seus modos. No fim da mesa, parece que nem ouviam o que se falava. Eram surdos-mudos para as conversas da casa-grande.
Aquele irmão mais moço do meu avô passava para a galeria dos meus heróis. O velho José Paulino governava os seus engenhos com o coração. Nunca o vi com armas no quarto. Umas carabinas que guardava atrás do guarda-roupa, a gente brincava com elas, de tão imprestáveis. Eu queria um senhor de engenho que protegesse assassinos, que tivesse guarda-costas, gente no rifle. Ouvia falar no dr. Quincas do Engenho Novo, num seu Né do Cipó Branco que, com cabras armados, arrombara a cadeia para tirar um protegido das grades. Estes sim, que eram senhores de engenho de verdade. Quando chegavam os parentes do Itambé, o seu Álvaro da Aurora, o Manuel Gomes do Riacho Fundo, com os filhos pequenos de botas e faca no colete, me punha a admirá-los como os meus grandes modelos. Meu avô falava das eleições da monarquia, dentro das igrejas. Os senhores de engenho iam até as armas, nas disputas. Brigavam pelos seus partidos, profanavam os templos de Deus, arrombando urnas e queimando atas. No Brejo de Areia, Félix Antônio levantou o povo contra o governo. De Goiana saiu um exército para atacar o Recife. Os senhores de engenho iam na frente com os seus negros. Mas o velho José Paulino não era homem para tais coisas. Ele era temido mais pela sua bondade. Não havia coragem que levantasse a voz para aquela mansa autoridade de chefe. Não tinha adversários na sua comarca. Os seus inimigos eram mais de sua família do que dele. Herdara-os com o Santa Rosa. O meu grande senhor de engenho teria outro tipo. O irmão que morrera brigando, o capitão Quincas Vieira, esse sim, eu quisera que vivesse, para o gozo da minha vaidade.