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— VAMOS HOJE AO sítio do seu Lucino — disse-me tia Maria.

E de tarde saímos para esse passeio. Íamos a pé. Os meninos na frente, a correr, e a tia Maria, uma negra e as duas costureiras atrás, conversando. Pela estrada encontrávamos de quando em vez gente a cavalo que vinha da feira de São Miguel. Traziam as cargas vazias, os caçuás emborcados e o quilo de carne dependurado na cangalha. Também mulheres a pé, de chinelas batendo no calcanhar e flor na cabeça. Os moleques informavam que eram as raparigas do Pilar que iam fazer a feira em São Miguel. Mas eu reparava que elas não traziam quilos de carne: vinham com as mãos limpas, abanando. Essa gente toda conversava: os de cavalo com os que iam a pé. Mais adiante encontramos o negro Zé Passarinho, bêbado, no seu costume de sempre. E um peso de carne, melado de terra, ao ombro, num cacete. Os moleques caíam em cima do pobre com pancadas, a que ele respondia descompondo.

Pela estrada, toda sombreada de cajazeiras, recendia um cheiro ácido de cajá maduro. Nós íamos colhendo cabrinhas amarelas e arrebenta-bois vermelhos que não comíamos porque matavam gente.

Depois a cerca de arame se abria num terreiro que dava para uma casa de telha, com parede de barro escuro. Um menino nu que estava na porta correu assombrado para dentro de casa. Umas mulheres apareceram.

— São os meninos do engenho.

Saíram para nos ver, quando avistaram a tia Maria na estrada. Foi uma festa de exclamações:

— Entre, Maria Menina, entre. Como vão todos de lá? Como está gorda, benza-a Deus!

E botaram tamboretes na porta, numa alegria saudável de quem estivesse em casa com uma princesa. Tia Maria conversava com elas sem bondade, perguntando pelos seus porcos, que elas criavam de meia, comendo umas goiabas de vez que lhe foram buscar.

— Maria Menina, cadê o menino de d. Clarisse?

Minha tia me chamou, e elas me fizeram todos os agrados, com aquelas mesmas exclamações:

— É a cara da mãe!

Foram me dando goiabas e limas-de-umbigo.

Os primos já estavam no sítio sacudindo pedras nas fruteiras. Atrás da casa ficava uma meia dúzia de laranjeiras e goiabeiras e um pé enorme de jenipapo. Num jirau, umas panelas velhas com craveiros brotando e bogaris pelas biqueiras florindo. E uns leirões de coentro cercados de faxina, porque as galinhas e os porcos se criavam soltos, entrando por dentro de casa, como gente. Na cozinha, uma trempe de ferro com fogo aceso e um pote com água barrenta do rio, que bebiam.

Dois meninos com medo correram para outra casa de perto. Depois foram se chegando para nós, desconfiados como cabritos, sujos e de barriga grande. Mas, quando o meu primo quis um jenipapo maduro, um deles trepou pelo pé de pau numa ligeireza de macaco.

A tia Maria ainda conversava no terreiro com as meninas de seu Lucino, como o povo chamava aquelas três velhas solteiras. Agora era de doenças que elas se queixavam, perguntando quando viria ao engenho o doutor, para se receitarem. A tia Maria prometia remédios, e contava a visita de Antônio Silvino para as velhas, que cortavam a conversa com um "Pai do Céu" e uma "Nossa Senhora" de vez em quando.

À tardinha voltamos para casa.

A estrada escurecia com as sombras da noite. Ainda restavam pelas folhas das canas os últimos raios de sol do dia. E os moleques começavam a falar em mal-assombrados. Bem juntos de tia Maria, quietos e calados, com medo de almas do outro mundo, íamos fazendo o retorno de nossa viagem.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora