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O SANTA FÉ FICAVA encravado no engenho do meu avô. As terras do Santa Rosa andavam léguas e léguas de norte a sul. O velho José Paulino tinha este gosto: o de perder a vista nos seus domínios. Gostava de descansar os olhos em horizontes que fossem seus. Tudo o que tinha era para comprar terras e mais terras. Herdara o Santa Rosa pequeno, e fizera dele um reino, rompendo os seus limites pela compra de propriedades anexas. Acompanhava o Paraíba com as várzeas extensas e entrava de caatinga adentro. Ia encontrar as divisas de Pernambuco nos tabuleiros de Pedra de Fogo. Tinha mais de três léguas, de estrema a estrema. E não contente de seu engenho possuía mais oito, comprados com os lucros da cana e do algodão. Os grandes dias de sua vida, lhe davam as escrituras de compra, os bilhetes de sisa que pagava, os bens de raiz, que lhe caíam nas mãos. Tinha para mais de quatro mil almas debaixo de sua proteção. Senhor feudal ele foi, mas os seus párias não traziam a servidão como um ultraje. O Santa Fé, porém, resistira a essa sua fome de latifúndios. Sempre que via aqueles condados na geografia, espremidos entre grandes países, me lembrava do Santa Fé. O Santa Rosa crescera a seu lado, fora ganhar outras posses contornando as suas encostas. Ele não aumentara um palmo e nem um palmo diminuíra. Os seus marcos de pedra estavam ali nos mesmos lugares de que falavam os papéis. Não se sentiam, porém, rivais o Santa Fé e o Santa Rosa. Era como se fossem dois irmãos muito amigos, que tivessem recebido de Deus uma proteção de mais ou uma proteção de menos. Coitado do Santa Fé! Já o conheci de fogo morto. E nada é mais triste do que um engenho de fogo morto. Uma desolação de fim de vida, de ruína, que dá à paisagem rural uma melancolia de cemitério abandonado. Na bagaceira, crescendo, o mata-pasto de cobrir gente, o melão entrando pelas fornalhas, os moradores fugindo para outros engenhos, tudo deixado para um canto, e até os bois de carro vendidos para dar de comer aos seus donos. Ao lado da prosperidade e da riqueza do meu avô, eu vira ruir, até no prestígio de sua autoridade, aquele simpático velhinho que era o coronel Lula de Holanda, com o seu Santa Fé caindo aos pedaços. Todo barbado, como aqueles velhos dos álbuns de retratos antigos, sempre que saía de casa era de cabriolé e de casimira preta. A sua vida parecia um mistério. Não plantava um pé de cana e não pedia um tostão emprestado a ninguém.

— Coitado do Lula — diziam os senhores de engenho em suas conversas. — Atrasou-se.

E o seu engenho perdera até o nome bonito, chamavam-no somente de engenho do seu Lula. Diziam, então, que ele vivia de uma botija que arrancara ao avô. As suas visitas ao Santa Rosa eram sempre de cerimônia. Tiniam na estrada as campainhas, e lá vinha o seu Lula com a família, com os cavalos magros de sua carruagem. Iam sempre para a sala de visitas, numa distância de estranhos que se encontrassem pela primeira vez. Neném do seu Lula, a sua filha, educara-se nos colégios de Recife. Falava diferente do meu povo. Eu olhava para ela, sentindo uma criatura que nunca tinha visto. Sentava-se como se estivesse de castigo, sem um movimento de vida, numa posição só, desde que entrava até que saía. E d. Amélia, pequenina, petrificara-se também, na etiqueta. Sabia tocar piano, casara-se com o coronel Lula de Holanda, no Recife.

Para o Santa Rosa, a visita dessa gente educada demais se tornava um suplício. A minha tia Maria nem tinha mais conversa. Os assuntos todos tinham ido embora. Ficávamos então calados, a olhar um para o outro, até a noitinha, quando saíam. Nós nos interessávamos pelo cabriolé. As histórias de Trancoso falavam muito das carruagens. E sinhá Totonha nos contava os seus romances, com princesas que andavam pelas estradas reais, em carros que tiniam as campainhas como o de seu Lula. Maria Borralheira perdera um sapato descendo duma carruagem daquelas.

Passava pelo Santa Fé, quando ia para a escola. A mesma tristeza, todas as manhãs e todas as tardes. O mato tomando conta do engenho. E a várzea com ressocas acanhadas, uns restos de cana que o tempo ia deixando viver, no meio do pasto grande. As casas dos moradores, caindo. Morava numa melhor o velho José Amaro sapateiro, que não plantava nada. Eu via o seu Lula na porta. Não tirava a gravata do pescoço. Mandava parar o cavalo para saber notícias do coronel José Paulino. Muito solene, muito parecido com aqueles senhores arruinados da Califórnia, que a gente vê no cinema, com os americanos tomando conta das terras deles.

Corriam histórias da casa de seu Lula: o povo de lá não comia, as negras viviam de jejum; uma lata de manteiga era para um mês; as vacas trabalhavam nos carros de boi. E ele tinha dinheiro de ouro enterrado. Quando se ia a pé para o Pilar, via-se pela faxina de sua horta uma sua irmã maluca, d. Olívia, andando de um lado para outro, falando só. Com os cabelos todos brancos e soltos, nunca vi uma imagem tão pungente da dor. Não me contavam nada de sua vida. Parecia mesmo que não tinha história.

O meu avô olhava para o seu vizinho com certo respeito. Dava-lhe a presidência da Câmara, como se quisesse corrigir com honrarias aquela crueldade do destino. Os moleques me contavam que o primeiro nome do Santa Fé fora Pegue Aqui Por Favor. O pai do seu Lula era um unha de fome. Levantara o engenho com o povo que passava na estrada. Pegue Aqui Por Favor e ia levantando a cumeeira, cobrindo a casa. E por isto ninguém ali ia para a frente.

Aquele destino sombrio me preocupava. Nas visitas ao Santa Fé demorava-me a olhar os quadros, os candeeiros bonitos, os tapetes, os móveis ricos de lá. Havia sempre uma nobreza naquela ruína. D. Amélia tocava piano, e a conversa era sempre de cerimônia. A doida às vezes aparecia sentada num canto, olhando-nos de longe, com a boca bulindo, como se comesse as palavras. Ouvia-se um sussurro de todo aquele cochichar com o desconhecido.

Uma noite bateram à porta do engenho. Era uma carta do seu Lula chamando o meu avô com urgência. Depois se soube. O velho estava dentro de casa como um leão enfurecido. Um dr. Luís Viana queria roubar-lhe a filha. Dois negros com espingarda de caçar passarinho e o seu Lula de clavinote. A casa toda escorada de tranca. A filha e a mulher chorando no santuário. Tinha pegado uma carta combinando uma fugida. E dali a filha não saía, com ele vivo. Tudo aquilo, porém, era mais de sua imaginação. Ninguém queria roubar d. Neném. Isso só serviu para a mangação da cabroeira. Fizeram até versos com o roubo da moça.

Seu Lula falava em voz alta, repetindo as palavras com um "já ouviu?" autoritário, no fim. Dizia uma mesma coisa duas, três vezes. De tarde aparecia para conversar com o velho José Paulino. Eu ficava ouvindo o que ele dizia. O meu avô só fazia escutar. O seu vizinho sabia muita coisa mais do que ele.

— Pobre do Lula — dizia quando lhe vinham contar histórias do seu amigo.

E o açúcar subia e o açúcar descia — e o Santa Fé sempre para trás, caminhando devagar para a morte, como um doente que não tivesse dinheiro para a farmácia.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora