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O ENGENHO ESTAVA MOENDO quando se ouviu um rumor de pancada na boca da fornalha. Eram dois cabras brigando de cacete e faca de ponta: Mané Salvino e o negro José Gonçalo. O de arma na mão avançava para o que sacudia o cacete pequeno, que chega tinia na cabeça de escapole do outro. O engenho todo correu para ver a briga. Os cabras não atendiam aos gritos do velho José Paulino.

— Deixem os negros se estragar.

Já estavam na bagaceira grudados como cachorros, num vaivém de pancadas e de golpes. Nisto o negro Gonçalo deu um grito e tombou para um lado com a mão na barriga. E Mané Salvino em disparada pelo cercado.

— Pega o cabra! Pega o cabra!

Corria gente de todos os lados atrás do assassino. Mestre Fausto sacudiu um tijolo e ele caiu de bruços por cima da cerca de arame.

Já estava amarrado de corda. E o outro estendido com as duas facadas mortais. Pedia água olhando para a gente com um olho amortecido. E nem dava um gemido:

— Quero água, quero água! — com uma fala rouca de tísico, arrastando a voz como um bêbado.

— Leve o homem para o sobradinho.

Mas quando pegaram nele, os braços caíram bambos. Estava nas últimas.

— Moleque bom, ordeiro — diziam do ofendido.

Mais tarde chegavam a mulher e os filhos num berreiro doloroso. Era um choro alto e pungente, o da negra e dos moleques pequenos. Cinco filhos miúdos e um de peito ainda.

Botaram o defunto na rede. Ia para o corpo de delito no Pilar. A família saiu atrás, enchendo aquela boa tranquilidade rural de uns lamentos de canto fúnebre.

O outro estava na casa de bagaço, apanhando:

— Valei-me, minha Nossa Senhora! Valei-me, minha Nossa Senhora!

E o cipó de boi roncando nas costas — lápote! lápote! E o grito de misericórdia do negro no chicote.

— Vá dizer ao seu Juca que eu não quero isto aqui. Mande o cabra pra vila. Entregue à Justiça. Lá, façam dele o que quiserem; aqui, não. Estas surras não adiantam nada.

O cabra vinha com a cabeça lascada, gotejando. A camisa toda suja de sangue, com as cordas amarrando os braços. Não olhava para ninguém.

— Diabo malvado!

— O negro me afrontou, seu coronel.

Quando saiu para o Pilar, foi com um bando atrás. Muitos já estavam do lado dele.

— Cadeia se fez foi pra homem.

A mulher e os filhos choravam também, pedindo proteção ao senhor de engenho.

O defunto deixara as tábuas do sobradinho encardidas de sangue. Rasparam com bucha no outro dia, mas a mancha ficou. Sangue de gente não larga. Sempre que estávamos pelo engenho, não pisávamos por cima daquilo, com medo. Espalhavam que enquanto aquele sangue não se sumisse o defunto ficaria aparecendo por ali. Havia gente que vira o negro deitado pelos picadeiros. E as visagens começavam a aparecer. Uns tinham encontrado o engenho moendo no seco. Outros, carros de boi andando sem sair do lugar. E o negro Gonçalo tombando cana. Estas histórias chegavam na cozinha, onde ninguém duvidava. O pé de marizeiro andava de um lado para outro do rio. E todo dia havia um sonho de botija para contar. Não se falava mais de lobisomem. As almas do outro mundo tomavam conta do medo do povo do Santa Rosa.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora