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BOTARAM-ME PARA APRENDER AS primeiras letras em casa dum dr. Figueiredo, que viera da capital passar tempos na vila do Pilar. Pela primeira vez eu ia ficar com gente estranha um dia inteiro.

Fui ali recebido com os agrados e as condescendências que reservavam para o neto do prefeito da terra. Tinha o meu mestre uma mulher morena e bonita, que me beijava todas as vezes que eu chegava, que me fazia as vontades: chamava-se Judite. Gostava dela diferente do que sentia pela minha tia Maria. Ela sempre que me ensinava as letras debruçava-se por cima de mim. E os seus abraços e os seus beijos eram os mais quentes que já tinha recebido.

E o dr. Figueiredo não parava no lugar. Só ficava quieto lendo os jornais e os livros, que tinha muitos pela mesa. A mulher era quem me ensinava, quem tomava conta de mim. Uma vez a vi chorando, com os olhos vermelhos, e o dr. Figueiredo saindo de casa batendo a porta. E doutra, enquanto eu ficava sozinho na sala com a minha carta na mão, ouvi no interior da casa um ruído de pancadas e uns gritos de quem estivesse apanhando. Compreendi então que a minha bela Judite apanhava do marido. Tive mesmo ímpeto de correr para a rua e chamar o povo para acudi-la. Mas fiquei quieto na cadeira, escutando-lhe o soluço abafado. Mais tarde ela chegou para me ensinar, e me abraçou e me beijou como nunca. Fiquei a pensar no que sofria a minha amiga, na convivência daquele homem magro e alto. E o meu coração sentiu-se cheio de uma afeição estranha pela sua mulher. Era tão terna para mim, me punha no colo para me agradar, para me dizer que me queria um bem de mãe. Eu sentia o seu sofrimento como se fosse o meu.

Foi ali com ela, sentindo o cheiro de seus cabelos pretos e a boa carícia de suas mãos morenas, que aprendi as letras do alfabeto. Sonhava com ela de noite, e não gostava dos domingos porque ia ficar longe de seus beijos e abraços.

Depois mandaram-me para a aula dum outro professor, com outros meninos, todos de gente pobre. Havia para mim um regime de exceção. Não brigavam comigo. Existia um copo separado para eu beber água, e um tamborete de palhinha para "o neto do coronel Zé Paulino". Os outros meninos sentavam-se em caixões de gás. Lia-se a lição em voz alta. A tabuada era cantada em coro, com os pés balançando, num ritmo que ainda hoje tenho nos ouvidos. Nas sabatinas nunca levei um bolo, mas quando acertava, mandavam que desse nos meus competidores. Eu me sentia bem com todo esse regime de miséria. Os meninos não tinham raiva de mim. Muitos deles eram de moradores do engenho. Parece que ainda os vejo, com seus bauzinhos de flandres, voltando a pé para casa, a olharem para mim, de bolsa a tiracolo, na garupa do cavalo branco que me levava e trazia da escola.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora