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O MEU AVÔ MANDOU botar o cabra no tronco. E nós fomos vê-lo, estendido no chão, com o pé metido no furo do suplício. Raramente eu tinha visto gente no tronco. Somente um negro ladrão de cavalos ficara ali até que chegassem os soldados da vila, que o levaram. Agora, porém, Chico Pereira estava lá, com os pés no buraco redondo.

— É mentira daquela bicha severgonha. Ela botou pra cima de mim os estragos que os outros fez. Ela pode casar com o diabo, comigo não. O coronel me mata, mas eu não me amarro com aquela peste. Vou pra cadeia, crio bicho na peia, mas não vivo com a descarada daquela quenga. Eu não tapo buraco dos outros.

O cabra, deitado de costas, com os pés presos no tronco, me impressionou com aquela sua fala de revoltado. Chico Pereira era cambiteiro, moleque chibante da bagaceira, cheio de ditos e nomes obscenos. Todo mundo acreditava que tivesse sido ele mesmo o autor do malfeito na mulata Maria Pia. A mãe da ofendida viera dar queixas ao meu avô, botando a coisa pra cima de Chico Pereira. E no tronco ele ficaria até se resolver a casar com a sua vítima.

No outro dia voltei para junto do prisioneiro. As pernas presas já estavam inchadas, apertadas demais no buraco do tronco. Ele quando me viu me chamou:

— Vá pedir a Maria Menina para me valer.

Tia Maria me disse:

— Se ele deve, deve pagar.

Na hora do almoço eu mesmo fui levar ao preso o prato de comida. Estava com o corpo todo dormente. Aquela imobilidade de mais de 24 horas ia deixando entorpecida a circulação.

— Morro aqui, e não caso. Aquela desgraçada me paga. O coronel pode me picar de facão.

Fiquei ao lado de Chico Pereira, deixei os meus primos e os moleques. Não fui ao poço lavar os cavalos para ficar com ele, conversando, ouvindo as suas histórias, sentindo as suas angústias. Era uma injustiça o que estavam fazendo. Por que não seria mentira da mulata? Não havia ninguém no engenho que estivesse a favor do cabra. A moça tinha sido ofendida, e o moleque que pagasse o que devia. Chico Pereira só contava comigo.

À tarde, estava o meu avô sentado na sua cadeira, perto da banca, no alpendre, quando chegaram Maria Pia e a mãe. Vinham todas duas chorando. A velha correu logo para a tia Maria, ajoelhando-se aos seus pés:

— Proteja a minha filha, Maria Menina.

O meu avô ordenou que acabasse com aquela latomia. E mandou buscar um livro que havia debaixo do santuário.

— Você vai jurar em cima deste livro santo como contará a verdade de tudo. O cabra está no tronco. Ele nega, prefere morrer a casar. Vamos, bote a mão aqui em cima e diga o nome de quem lhe fez mal.

Deu o livro vermelho com a cruz dourada na capa para a negra botar a mão em cima. A velha e a filha ficaram fora do mundo. Aquele livro santo não era para menos. E então a mãe de Maria Pia, como se estivesse com a faca nos peitos:

— Menina, não bota a tua alma no inferno.

O povo todo tinha chegado para perto da mulata.

— Vamos — disse o meu avô, com aquela sua voz de mando.

E a mulata com os olhos esbugalhados:

— Juro que foi o doutor Juca quem me fez mal.

O meu avô não deu uma palavra. Só fez dizer:

— Soltem o cabra.

Corri para ver Chico Pereira, com a ânsia de encontrar o meu constituinte inocente.

Ele não podia andar. Os pés inchados não tocavam no chão.

— Estou com um formigueiro no corpo todo. Eu não dizia que a negra não prestava? O doutor Juca agora vai ficar com mais esta nas costas.

Na casa-grande só se falava baixinho no caso. Minha tia Maria não me deu uma palavra. Na hora da ceia meu avô pouco falou. Tio Juca não viera para a mesa. Apenas no fim o velho José Paulino queixou-se:

— Não sei pra que servem os estudos. A gente gasta um dinheirão, e eles voltam pra fazer besteiras desta ordem.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora