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COM A MORTE DE LILI, tia Maria ficou toda em cuidados comigo. Proibiu-me da liberdade que eu andava gozando como um libertino. Passava o dia a me ensinar as letras. Os meus primos, esses, ninguém podia com eles.

Ficava eu horas a fio sentado na sala de costura, com a carta de á-bê-cê na mão, enquanto por fora de casa ouvia o rumor da vida que não me deixavam levar. Era para mim, esta prisão, um martírio bem difícil de vencer. Os meus ouvidos e os meus olhos só sabiam ouvir e ver o que andava pelo terreiro. E as letras não me entravam na cabeça.

— Nunca vi um menino tão rude — dizia asperamente a velha Sinhazinha.

Tia Maria, porém, não desanimava, continuando com afinco a martelar a minha desatenção.

As conversas das costureiras começavam então a me prender. Elas trabalhavam numa palestra que não parava. Falavam sempre de outros engenhos, onde estiveram no mesmo serviço, contando das intimidades das famílias.

— No Santarém ninguém come — dizia uma —, é bacalhau no almoço e no jantar.

A outra contava que o senhor de engenho do Poço Fundo tinha mais de vinte mulheres. Esta conversa me tomava inteiramente, e as letras, que a solicitude de minha tia procurava enfiar pela minha cabeça, não tinham jeito de vencer tal aversão. O que eu queria era a liberdade de meus primos, agora que as arribaçãs, com a seca do sertão, estavam descendo em revoada para os bebedouros.

Chamavam de arribaçãs as rolas sertanejas que desciam, batidas pela seca, para o litoral. Vinham em bando como uma nuvem, muito no alto, a espreitar um poço de água para a sede de seus dias de travessia. E quando o avistavam, faziam a aterrissagem em magote, escurecendo a areia branca do rio. Nós ficávamos de espreita, de cacete na mão, para o massacre. E a sede das pobres rolas era tal que elas nem davam pelos nossos intuitos. Matávamos a cacetadas, como se elas não tivessem asas para voar. A seca comera-lhes o instinto natural de defesa. Depois, no colégio, quando no Gênio do cristianismo, eu lia uns versos falando dos pássaros da Bretanha, que fugiam do inverno de sua pátria, vinha-me a saudade das pobres rolas sertanejas que trucidávamos.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora