NA MATA DO ROLO estava aparecendo lobisomem. Na cozinha era no que se falava, num vulto daninho que pegava gente para beber sangue. Manuel Severino, quando voltava de uma novena, levara uma carreira do bicho. Ele mesmo contava:
— Eu vi o vulto partir pra cima de mim, e larguei as pernas num carreirão de cavalo desembestado. Olhei pra trás, e só vi o mato bulindo com um pé de vento de arrancar raiz.
As notícias do bicho misterioso chegavam com todos os detalhes. Uns afirmavam que José Cutia estava encantado outra vez. José Cutia era um comprador de ovos da Paraíba, um pobre homem que não tinha uma gota de sangue na cara. Andava sempre de noite, talvez para melhor fazer as suas caminhadas, sem sol. E por isto tinha-se na certa que era ele o lobisomem.
— Ele quer corar com o sangue dos outros.
E havia gente que até vira José Cutia por debaixo das ingazeiras virando bicho. As unhas cresciam como lâminas enormes, os pés ficavam como os de cabra, e os cabelos eram crinas de cavalo. Diziam que o homem grunhia como porco na faca, no momento de se encantar. Ele não queria, mas o seu corpo não podia viver sem sangue. E bancava lobisomem contra a vontade.
O povo não tinha raiva dele; tinha pena até. Porque era certo que José Cutia era mandado de noite por uma força que não era dele. Mas nós, quando o víamos passar com as suas cestas de ovos, fugíamos da estrada com medo. Diziam também que ele comia fígado de menino e que tomava banho com sangue de criança de peito.
— Lá vem o papa-figo! — era assim que botavam a gente para correr de qualquer parte.
E as histórias corriam como os fatos mais reais deste mundo. Agora era o encontro do padre Ramalho com o lobisomem na mata. O padre ia para dar a extrema-unção a um doente nos Caldeiros, quando viu uma coisa puxando pelo rabo do cavalo. Deu de rebenque, meteu as esporas, e nada. O cavalo parecia com os pés enterrados no chão. Olhou para trás, viu o bicho já querendo partir para cima dele. Tirou do bolso a caixinha com a hóstia consagrada, e apontou. Ouviu o baque de um corpo todo, e um gemido comprido de moribundo. O cavalo tomou as rédeas, disparando. No outro dia encontraram José Cutia desfalecido na estrada.
E o lobisomem bebia sangue também dos animais, chupava os cavalos no pescoço. O poldro coringa do meu avô amanheceu um dia com um talho minando sangue. O lobisomem andara de noite pelas estrebarias.
Eu acreditava em tudo isto, e muitas vezes fui dormir com o susto destes bichos infernais. Na minha sensibilidade ia crescendo este terror pelo desconhecido, pelas matas escuras, pelos homens amarelos que comiam fígado de menino. E até grande, rapaz de colégio, quando passava pelos sombrios recantos dos lobisomens, era assoviando ou cantando alto para afugentar o medo que ia por mim. Os zumbis também existiam no engenho. Os bois que morriam não se enterravam. Arrastava-se para o cemitério dos animais, à beira do rio, debaixo dos marizeiros, onde eles ficavam para o repasto dos urubus. De longe sentia-se o hálito podre da carniça, e a gente via os comensais disputando os pedaços de carne e as tripas do defunto. O zumbi, que era a alma dos animais, ficava por ali rondando. Não tinha o poder maligno dos lobisomens. Não bebia sangue nem dava surras como as caiporas. Encarnava-se em porcos e bois, que corriam pela frente da gente. E quando se procurava pegá-los, desapareciam por encanto.
O velho Fausto, maquinista, uma vez, indo para o sítio da Paciência, se deparou com um porco-espinho roncando. Por onde ia, ia o porco, como um cachorro de fila. E ele, perdendo a calma, sacudiu o seu cacete de jucá, com toda a força, no lombo do barrão: foi num toco preto de pau que bateu.
Eles me contavam estas histórias dando detalhe por detalhe, que ninguém podia suspeitar da mentira. E a verdade é que para mim tudo isto criava uma vida real. O lobisomem existia, era de carne e osso, bebia sangue de gente. Eu acreditava nele com mais convicção do que acreditava em Deus. Ele ficava tão perto da gente, ali na Mata do Rolo, com as suas unhas de espetos e os seus pés de cabra! Deus fizera o mundo somente. Era distante dos nossos medos, e nós não o víamos como a José Cutia com o seu cesto de ovos. Pintavam o lobisomem com uma realidade tão da terra que era mesmo que eu ter visto. De Deus, tinha-se uma ideia vaga de sua pessoa. Um homem bom, com um céu para os justos e um inferno para a gente ruim como a velha Sinhazinha, com caldeiras e espetos quentes. Mas tudo isso depois que o sujeito morresse. O lobisomem lutava corpo a corpo com a gente viva. Era sair antes da meia-noite para a Mata do Rolo, e encontrá-lo.
Punham-nos a dormir nos embalando com o bicho-carrapatu. A cabra-cabriola, a caipora, encontravam na mata os caçadores solitários. A burra de padre andava tinindo as correntes de suas patas pelas porteiras distantes. Um mundo inteiro de duendes em carne e osso vivia para mim. E o que de Deus nos contavam era tudo muito no ar, muito do céu, muito do começo do mundo. É verdade que os sofrimentos de Jesus Cristo na semana santa nos tocavam profundamente. Mas Jesus Cristo era para nós diferente de Deus. Deus era um homem de barbas grandes, e Jesus era um rapaz. Deus nunca nascera, e Jesus tivera uma mãe, aprendera a ler, levava carão, fora menino como os outros. E nós não sabíamos compreender os mistérios da Santíssima Trindade. Só depois o catecismo viria destruir a minha crença absoluta nos bichos perigosos do engenho. Muita coisa deles, porém, ficou por dentro da minha formação de homem.