MEU AVÔ ME LEVAVA sempre em suas visitas de corregedor às terras de seu engenho. Ia ver de perto os seus moradores, dar uma visita de senhor nos seus campos. O velho José Paulino gostava de percorrer a sua propriedade, de andá-la canto por canto, entrar pelas suas matas, olhar as suas nascentes, saber das precisões de seu povo, dar os seus gritos de chefe, ouvir queixas e implantar a ordem. Andávamos muito nessas suas visitas de patriarca. Ele parava de porta em porta, batendo com a tabica de cipó-pau nas janelas fechadas. Acudia sempre uma mulher de cara de necessidade: a pobre mulher que paria os seus muitos filhos em cama de vara e criava-os até grandes com o leite de seus úberes de mochila. Elas respondiam pelos maridos:
— Anda no roçado.
— Está doente.
— Foi pra rua comprar gás.
Outras se lastimavam de doenças em casa, com os meninos de sezão e o pai entrevado em cima da cama. E quando o meu avô queria saber por que o Zé Ursulino não vinha para os seus dias no eito, elas arranjavam desculpas:
— Levantou-se hoje do reumatismo.
O meu avô então gritava:
— Boto pra fora. Gente safada, com quatro dias de serviço adiantado e metidos no eito do Engenho Novo. Pensam que eu não sei? Toco fogo na casa.
— É mentira, seu coronel. Zé Ursulino nem pode andar. Tomou até purga de batata. O povo foi contar mentira pro senhor. Santa Luzia me cegue, se estou inventando.
E os meninos nus, de barriga tinindo como bodoque. E o mais pequeno na lama, brincando com o borro sujo como se fosse com areia da praia.
— Estamos morrendo de fome. Deus quisera que Zé Ursulino estivesse com saúde.
— Diga a ele que pra semana começa o corte da cana.
E quase sempre mais adiante nós encontrávamos Zé Ursulino de cacete na mão e com a sua saúde bem rija.
— Já disse à sua mulher que lhe boto pra fora. Não vai trabalhar na "fazenda", mas anda vadiando por aí. Não quero cabra safado no meu engenho.
E era a mesma conversa. Que pra semana ia na certa. Que andava doente de novo, com dores pelo corpo todo.
Doutras vezes batíamos a uma porta aonde não acudia ninguém. Mais adiante a família toda estava pegada na enxada: o homem, a mulher, os meninos. E vinha logo de chapéu na mão, pedir as suas ordens. Era um rendeiro que não tinha a obrigação dos três dias no eito. Pagava o foro e ficava livre da servidão da bagaceira. O seu roçado de algodão e de fava garantia essa meia liberdade que gozava. Então meu avô perguntava pelo que se passava nos arredores, se alguém andava vendendo algodão por fora ou tirando lenha da mata para vender.
— Que eu saiba, não, seu coronel.
— Pois você vigie por aqui.
E depois:
— Cabra bom — me dizia. — Nunca me deu trabalho.
E numa casa de palha uma mulher branca, como de madapolão, sem uma gota de sangue na cara, com um menino pequeno engatinhando no chão quente do terreiro e o outro de peito, nos braços: era a mulher de Chico Baixinho. Tinha parido há oito dias, e o marido no mundo.
— Ninguém sabe onde ele anda, seu coronel. Aquilo é um desgraçado. Me deixou em cima da cama com a barriga rachando, e danou-se. Só não morri à míngua porque o povo daqui socorreu.
O meu avô dizia para ela ir buscar bacalhau no engenho.
Noutra casa o povo todo estava caído de sezão. Tinham voltado da várzea de Goiana amarelos e inchados de paludismo.
— Mande o menino buscar quinino no engenho. Vocês saem daqui com saúde e voltam assim em petição de miséria. Vão outra vez pra Goiana.
Eram assim as viagens do meu avô, quando ele saía a correr todas as suas grotas, revendo os pés de pau de seu engenho. Ninguém lhe tocava num capão de mato, que era mesmo que arrancar um pedaço de seu corpo. Podiam roubar as mandiocas que plantava pelas chãs, mas não lhe bulissem nas matas. Ele mesmo, quando queria fazer qualquer obra, mandava comprar madeira nos outros engenhos. Os seus paus-d'arco, as suas perobas, os seus corações-de-negro cresciam indiferentes ao machado e às serras. Uma vez, numa das nossas viagens, vi-o furioso como nunca. Entrávamos por uma picada na mata grande, e ouvimos um ruído de machado:
— Quem lhe deu ordem para botar abaixo este pau-d'arco?
— Foi o doutor Juca — respondeu mais morto do que vivo o seu Firmino Carpina.
— Mas o senhor sabe que eu não quero que se meta machado por aqui, com os seiscentos mil diabos!
E voltou para casa sem dar mais uma palavra, sem parar em parte alguma.