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ESTAVAM NA LIMPA DO partido da várzea. O eito bem pertinho do engenho. Da calçada da casa-grande viam-se no meio do canavial aquelas cabeças de chapéu de palha velho subindo e descendo, no ritmo do manejo da enxada: uns oitenta homens comandados pelo feitor José Felismino, de cacete na mão, reparando no serviço deles. Pegava com o sol das seis, até a boca da noite. Às vezes eu ficava por lá, entretido com o bate-boca dos cabras. Trabalhavam conversando, bulindo uns com os outros, os mais moços com pabulagem de mulheres. Outros bem calados, olhando para o chão, tirando a sua tarefa com a cara fechada. Assim, poucos. Os demais raspavam a junça dos partidos contando histórias e soltando ditos.

— Deixa de conversa, gente! — gritava seu José Felismino. — Bota pra diante o serviço. Com pouquinho o coronel está aqui gritando.

E a enxada tinia no barro duro, e eles espalhando com os pés o mato que ficava atrás. O sol espelhava nas costas nuas; corria suor em bica dos lombos encharcados.

Manuel Riachão puxava o eito na frente, como um baliza. Era o mais ligeiro. De cabeça enterrada, a enxada nas suas mãos raspava como uma máquina a terra que aparecesse na frente. Sempre na dianteira, deixando na bagagem os companheiros. O moleque Zé Passarinho remanchando, o último do eito. Não havia grito que animasse aquele preguiça alcoolizada. Também, ganhava dois cruzados, davam-lhe a mesma diária das mulheres na apanha do algodão.

— Tira a peia da canela, moleque safado! O diabo não anda!

E ele atrás, na maciota, com os pés roliços de bicho e o corpo rebentando em moléstias do mundo.

Paravam às dez horas, para o almoço de farinha seca com bacalhau. Comiam na marmita de flandres, lambendo os beiços como se estivessem em banquetes. E deitavam-se por debaixo dos pés de juá, esticando o corpo no repouso dos 15 minutos. De alguns, as mulheres traziam a comida num pano sujo; a carne de ceará assada, com farofa fria. Pegavam no pesado outra vez, até às seis da tarde.

O meu avô vinha olhar a canalha no trabalho forçado.

— Que está fazendo esta gente, seu José Felismino? Oitenta pessoas, e o partido no mato? Nem eito de mulher!

Não se importavam com a gritaria do velho. Aquilo era de todos os dias, fizessem eles muito ou fizessem pouco. Só tinha boca, o coronel José Paulino. Chamava nomes a todos, descompunha-os como a malfeitores, mas não havia um ali que não estivesse com dias adiantados no livro de apontamentos.

Cachorrinhos com barriga partindo, de magros, acompanhavam seus donos para a servidão. Rondavam pelos cajueiros, perseguindo os preás. Porém não pisavam no terreiro da casa-grande. Os cachorros gordos do engenho não davam trégua aos seus infelizes irmãos da pobreza.

João Rouco vinha com três filhos para o eito. A mulher e os meninos ficavam em casa, no roçado. Com mais de setenta anos, aguentava o repuxo todo, como o filho mais novo. A boca já estava murcha, sem dentes, e os braços rijos e as pernas duras. Não havia rojão para o velho caboclo do meu avô. Não era subserviente como os outros. Respondia aos gritos do coronel José Paulino, gritando também. Talvez porque fossem da mesma idade e tivessem em pequeno brincado juntos.

— Cabra malcriado!

E quando precisava de gente boa, para um serviço pesado, lá ia um recado para João Rouco.

O velho Pinheiro não prestava para nada. Roubava como boi ladrão, vivia de enredadas no engenho. E os filhos, a mesma cambada. Quando vinha ao eito, passava o tempo se queixando de dores. Botavam-no então para serviços maneiros. Ouvia os desaforos do feitor com a cara mais limpa do mundo. E os seus vizinhos não criavam galinhas, porque ele era mesmo que raposa com fome. Também, para os cabras do eito não valia nada. João Rouco, respeitavam-no de verdade. Tratavam-no de seu João, e para ele não vinham com brincadeiras. Nós mesmos, os meninos da casa-grande, as negras da cozinha, os moleques do engenho, púnhamos o velho João Rouco numa categoria diferente.

Em tempos de emergência, o eito se avolumava com os foreiros e os lavradores. Desciam para um adjutório ao senhor de engenho. Para mais de duzentas enxadas se espalhavam pelos canaviais. Os foreiros e os lavradores, os pequeno-burgueses do engenho, desciam de suas ordens para este contato ombro a ombro com os párias. E não recebiam nada pelo dia que davam. Queriam assim fugir da indignidade do eito, trabalhando de graça. Quando havia ajuntamento destes, para nós, meninos, era um espetáculo. Levavam mel de furo, para a regalada merenda dos cabras. E à noite, o terreiro da casa-grande se enchia com um exército de esfarrapados. Bebiam cachaça nos dias de chuva, e voltavam para casa para o sono miserável da cama de vara.

O costume de ver todo dia esta gente na sua degradação me habituava com a sua desgraça. Nunca, menino, tive pena deles. Achava muito natural que vivessem dormindo em chiqueiros, comendo um nada, trabalhando como burros de carga. A minha compreensão da vida fazia-me ver nisto uma obra de Deus. Eles nasceram assim porque Deus quisera, e porque Deus quisera nós éramos brancos e mandávamos neles. Mandávamos também nos bois, nos burros, nos matos.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora