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O CASAMENTO DA TIA MARIA estava marcado para o são Pedro. Ela fora ao Recife comprar muita coisa do seu enxoval. Trouxera-me um velocípede e uma roupa bonita de marinheiro. Comprara com estes presentes a minha vontade de ir com ela também.

No engenho, os preparativos da festa tomavam conta de todas as atividades. Os pintores já tinham terminado a limpeza da casa-grande. Tudo estava cheirando ao óleo novo das portas; os marceneiros envernizavam a mobília preta da sala; recendia o ouro banana das molduras remoçadas. O mestre Galdino, cozinheiro, chegara da cidade para fazer o banquete. A negra Generosa ficava assim destronada de seu reino, e na cozinha não podiam mais entrar os meninos. O homem de chapéu branco e de avental preparava os fiambres, isolado de todo mundo. Parecia que a casa-grande perdera a metade de sua vida com a porta da cozinha fechada. O homem não queria conversas pelos bancos. Ninguém podia saber das coisas, por ali onde se publicavam todas as novidades do engenho. Nas cozinhas das casas-grandes vivem as brancas e as negras, nessas conversas como de iguais. As brancas deitadas, dando as cabeças para os cafunés e a cata dos piolhos. E as negras vão lhes contando as suas histórias, fazendo os seus enredos, pedindo os seus favores. Agora, para o casamento da tia Maria, o velho Galdino fechara a cozinha do Santa Rosa.

Começavam a chegar as gentes dos outros engenhos para a grande festa de são Pedro: o povo da Aurora, da Fazendinha, do Jardim, do Cambão. Os carros de boi paravam no terreiro com uma festa de abraços. Vinham meninos, vinham negras, vinha o baú com o vestido novo para o dia. Chegava gente de cavalo, gente de trem, da Paraíba e do Recife. Mandaram buscar o piano de d. Neném do seu Lula. E quando chegou, na cabeça dos cabras, lembrei-me de repente do Recife. Lá eles cantavam. Corri então para ver a cantiga dos ganhadores, regulando os passos com a toada, para não desafinar:

João Crioulo,
Maria Mulata.
João Crioulo,
Maria Mulata,
.....................
Ai pisa-pilão,
pilão gonguê.
Ai pisa-pilão,
pilão gonguê.

E na beira dos rios começava a matança dos porcos e dos carneiros. Fui ver os sacrifícios. Iam matar também o meu carneiro. Dar-me-iam outro, mas o Jasmim estava rebolando de gordo, bom mesmo para o talho. Os porcos gemiam na ponta da faca de Zé Guedes, e um sangue escuro corria em arco do pescoço furado.

— Menino não pode ver estas coisas. Vira assassino.

E o bicho ficava com o olho duro, olhando para a gente.

O meu pobre Jasmim iria para a faca. Estava debaixo dos marizeiros esperando a hora da morte. Comia ainda o capim do chão, numa inocência que me tocou. Não sabia de nada. Olhei para o meu companheiro como para um amigo condenado à forca. Zé Guedes com a maceta na mão pegou-o pelo cabresto. Sacudiu-lhe o cacete na cabeça, que o deixou estendido, arquejando. Amarrou o meu Jasmim pelos pés e dependurou-o de cabeça para baixo. Depois meteu-lhe a faca de ponta na garganta. Nem um gemido do pobrezinho. Calado, com o sangue correndo e os olhos abertos, bem vivos. Duas grandes lágrimas minavam naquele olhar comprido de sofrimento. E começaram a tirar o couro, com o quicé chiando e a carne branca aparecendo.

— É gordura muita.

Saí da matança com a alma doente, e teria chorado muito se não fosse o alvoroço do povo na casa-grande. As negras trepadas, limpando os vidros das rótulas. As visitas em conversas pelos quartos. E a pândega dos homens pela calçada. As risadas e as histórias contadas para fazer graça. Os senhores de engenho da redondeza, de meia e chinela no pé, falavam de safras, de preço de açúcar, de bois de carro, de inverno, de plantações de cana. Na casa-grande do Santa Rosa, não havia mais cômodo para tanta gente. Armavam redes pela casa de farinha e no sobradinho do engenho. E ainda chegariam convidados no dia do casamento. O meu avô ficava em palestra com os mais velhos. Os perus de roda e os capões gordos morriam aos magotes na cozinha. Vinha um caixão de gelo e outro de frutas estrangeiras, da Paraíba. A música da polícia estaria ali no trem das dez. Pelo alpendre da casa-grande só se via gente falando. Os moleques a cavalo, em osso, levando e trazendo recados do Pilar. O vestido da noiva chegaria de tarde, do Recife. O mestre Galdino não deixava ninguém na cozinha. Os moradores que apareciam iam ficando sentados pelas pontas da calçada, escutando tudo de boca aberta. Lica da Ponte trouxera uma porção de cravos para a noiva. A velha Sinhazinha dividia com os outros o seu prestígio de dona. Todo mundo mandava nas arrumações. E havia três e quatro mesas para o almoço e para o jantar. Esperava-se o noivo com o pessoal do Gameleira no outro dia de manhã. E de manhã chegaram, esquipando na estrada. Correu todo mundo para ver chegar. E foi uma gritaria de recepção. Levaram para o quarto de cortinado, e ele também ficou de meia e chinela, na conversa dos outros. Tia Maria, nem pude falar com ela. As primas do Maravalha estavam no seu quarto preparando a noiva para a tardinha. Os craveiros da horta, limpos. Uma "bem-casada" preparava o ramo da noiva. E a hora ia chegando. O padre Severino já estava lá com o juiz. A tia Maria toda de branco, bem triste, olhando para o chão. A música da Paraíba tocava no alpendre. O noivo, contente, respondendo às pilhérias dos rapazes. O meu avô, de preto, com o seu correntão de ouro no colete, e a velha Sinhazinha ringindo, na seda do vestido comprado feito, no Recife. A casa estava cheia de gente. Era um zum-zum por toda parte. Buliam comigo:

— Vai ficar sozinho, hein? Quem vai tomar conta dele agora é a velha Sinhazinha.

Não quis ver o casamento. Corri chorando para a minha cama. Tiniam os pratos na sala de jantar. Era o banquete. O dr. Jurema fazia um discurso aos noivos. Bateram no copo quando ele se levantou. A tia Maria, enfiada. Nem olhava para ninguém. Os senhores de engenho embevecidos com o discurso do promotor. Era um elogio ao meu avô, que nem ouvia nada, pensando na filha. Depois veio a segunda, a terceira, a quarta e a quinta mesa. E o baile de arromba na sala de visitas. Quem marcava a quadrilha era o prof. José Vicente, do Pilar. Os noivos sentados no sofá, no centro da sala. E o baile rolando.

Fui dormir. Minha tia Maria me beijou chorando. E de manhã, quando me acordei, ainda a música tocava para a dança. Os noivos iriam no cabriolé do seu Lula. Já estavam preparados para a partida. Maria Menina dava os seus adeuses com os olhos correndo lágrimas. Abraçava as negras, que soluçavam de pena. E me beijou, me abraçou não sei quantas vezes, enquanto eu chorava num pranto desesperado. O cabriolé saía tinindo as campainhas de seus arreios. E pela estrada molhada das chuvas de fim de junho, lá se fora a segunda mãe que eu perdia. No terreiro ainda fumaçava o resto da fogueira da noite. Depois selaram os cavalos para as visitas que se iam. Os de longe, mais cedo. Outros ficavam ainda para o almoço. Os carros de boi saíam carregados de gente.

No outro dia amanheceu chovendo, e o Santa Rosa a coisa mais triste do mundo. Tudo vazio para mim, tudo oco, sem os cuidados, os beijos e as cavilações da minha tia Maria.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora