ATÉ QUE AFINAL CONSEGUIRA o meu carneiro para montar. Vivia a pedi-lo ao tio Juca, ao primo Baltasar do Beleza, a todos os parentes que tinham rebanho. Um dia chegou um carneiro para mim. Já vinha manso e era mocho. Carneiro nascido para montaria. Chamava-se Jasmim. Via chegar ao engenho os meninos do Zé Medeiros, do Pilar, cada um no seu carneiro arreado, esquipando pela estrada. E uma grande inveja enchia o meu coração.
Comecei então a alimentar o sonho de ser dono também de um cavalinho daquele. E um sonho de menino é maior que de gente grande, porque fica mais próximo da realidade. O meu tomara conta de todas as minhas faculdades. E de tanto pedir, eu entrara na posse do objeto sonhado. Já tinha o meu carneiro Jasmim. Faltavam-me a sela e os arreios. Sonhei também noites inteiras com o meu corcel todo metido nos seus arreios de luxo. Queria-os, e, por fim, mandaram fazê-los em Itabaiana.
Os canários do Santa Rosa iriam cantar sem a sedução da minha armadilha escancarada. Era todo agora para o meu carneiro chamado Jasmim. Conduzia-o de manhã para o pasto, levava água fria para ele beber, dava-lhe banho com sabonete, penteava-lhe a lã. E à tardinha saía para os meus passeios. Esses passeios, sozinho, pela estrada, montado no meu Jasmim penteado, arrastava-me aos pensamentos de melancólico. Deixava a dócil cavalgadura a rédeas soltas, e fugia para dentro do meu íntimo. Pensava em coisas ruins — no meu avô morto, e no que seria do engenho sem ele. Ouvia sempre dizer:
— Quando o velho fechar os olhos, quem vai sofrer é a pobreza do Santa Rosa.
E esta ideia da morte do velho José Paulino dominava as minhas cogitações. Quem tomaria conta do Santa Rosa, quem pagaria os trabalhadores?
O carneirinho, com o passo miúdo, andava os meus caminhos, e eu nem os olhava, embebido que estava nos meus pensamentos. Pensava muito em minha tia Maria. Ela estava se preparando para casar com o seu primo do Gameleira. Não sei quantas costureiras cosiam as suas camisas e as suas saias brancas. Bordavam letras nas fronhas. E ela comprava as rendas da terra que apareciam. Havia na horta um jirau com craveiros trabalhando para o dia do casamento. Ia-se embora a minha grande amiga. Mas um incidente qualquer me arrancava dessas cogitações. E começava a ver a estrada de verdade.
O Jasmim sabia andar os seus caminhos com segurança, conhecia os atalhos e os desvios das poças d'água. Eu parava quase sempre pela porta dos moradores. As mulheres sem casaco, quase com os peitos de fora, faziam renda sentadas pelos batentes. Os filhos corriam para ver o meu carneiro e pediam uma montada. Ficava brincando com eles, misturado com os pequenos servos do meu avô, com eles subindo nas pitombeiras e comendo jenipapo maduro, melado de terra, que encontrávamos pelo chão. Contavam-me muita coisa da vida que levavam, dos ninhos de rola que descobriam, dos preás que pegavam para comer, das botijas de castanha que faziam. Muitos deles, amarelos, inchados, coitadinhos, das lombrigas que lhes comiam as tripas. As mães davam-lhes jaracatiá, e eles passavam dias e dias obrando ralo como passarinho. Cresciam, e eram os homens que ficavam de sol a sol, no eito puxado do meu avô. As mulheres perguntavam pelas coisas do engenho, queriam saber de tudo: do casamento de minha tia, da saúde de todo mundo. E quando eu pedia água para beber, iam arear o caneco de flandres, para me darem a água barrenta de seu gasto. Na volta não se esqueciam das lembranças, dos remédios que a tia Maria prometera. E me entregavam pacotes de renda:
— Diga à Maria Menina que é para o enxoval dela.
E também plantavam craveiros pensando no dia do casamento da filha do senhor de engenho.
O sol já quase escondido, nas minhas caminhadas de volta. Por debaixo das cajazeiras, o escuro frio da noite próxima. O carneiro corria. E o medo daquele silêncio de fim de dia, daquelas sombras pesadas, fazia-me correr depressa com o meu corcel. Trabalhadores, de enxada no ombro, vinham do serviço para casa. Conversavam às gaitadas, como se as doze horas do eito não lhes viessem pesando nas costas.