A TIA SINHAZINHA ME chamou para perto dela, e passou a mão pela cabeça, me agradando. Era a primeira vez que eu sentia um afago da velha.
— Você, no mês que entra, vai para o colégio.
Desde que a minha tia Maria se fora que me falavam do colégio:
— Ele não vai sentir muito, porque está se aprontando para o colégio.
E preparavam meu enxoval, faziam camisas de homem para mim, e calças compridas, e ceroulas. Tinha a mala nova cheia de roupa branca, para o internato. Comecei então a desviar as minhas lágrimas, pensando no tempo de colégio que viria. Não ia para ali com medo. Pelo contrário: vivia a desejar o dia de minha partida. Os primos tinham ido embora, e chovia todos os dias. E os dias de chuva me deixavam preso com os meus pensamentos.
O pé-d'água vinha zunindo nos cajueiros. Descia da mata numa carreira rumorosa, e roncava ao longe como trem na linha.
— Tira o feijão do sol! Empurra o balcão de açúcar!
Os moleques corriam para o terreiro coberto de ramas de mulatinho secando. A chuva chegava com pingos de furar o chão e chovia dia e noite sem parar. As primeiras chuvas do ano faziam uma festa no engenho. O tempo se armava com nuvens pesadas, fazia um calor medonho.
— Vamos ter muita água!
O meu avô ficava pelo alpendre a olhar o céu, batendo com a vara de jucá pelas calçadas. Era a sua grande alegria: a bátega d'água amolecendo o barro duro dos partidos, a enverdecer a folha amarela das canas novas.
Nas primeiras pancadas do inverno, os cabras deixavam o eito para tomar uma bicada na destilação. Vinham gritando de contentes, numa alegria estrepitosa de bichos. Mas isto somente nas primeiras chuvas. Depois aguentavam nas costas o aguaceiro, tomando o seu banho de chuvisco de 12 horas. Pela estrada passavam os cargueiros metidos em capotes, no passo moroso do cavalo. Paco, paco, paco, paco — lá iam espanando a água com os cascos. Chegavam os moradores com as calças arregaçadas, pedindo semente de algodão para o roçado. E a chuva caindo sem cessar.
Ficava a olhar os riachos descendo pelos altos e a estrada que parecia um rio de lado a lado. A casa-grande, escura como se fosse a boca da noite. Acendiam os candeeiros mais cedo. E a cozinha melada de lama, da gente de pés no chão que entrava por lá. José Felismino chegava de noite, respondendo às perguntas de meu avô:
— A terra molhou mais de um palmo. Tirou-se quatro cinquentas na planta do roçado. Acabou-se o partido de baixo. O inverno deste ano vai ser pesado. O Crumataú já desceu com muita água. Invernão.
Os dias ficavam compridos. Não se tinha por onde ir. Eu dava para olhar a chuva, que era a mesma coisa sempre, engrossando e afinando numa intermitência monótona e impertinente.
À tardinha os cabras do eito chegavam, pingando da cabeça aos pés. Vinham com as canelas meladas de lama e as mãos enregeladas de frio. O chapéu de palha pesado de água, gotejando. Mas indiferentes ao tempo. Parecia que estavam debaixo de bons capotes de lã. Levavam bacalhau para a mulher e os filhos, e iam dormir satisfeitos, como se os esperasse o quente gostoso de uma cama de rico. Dentro da casa deles, a chuva de vento amolecia o chão de barro, fazendo riachos da sala à cozinha. Mas os sacos de farinha do reino eram os edredões das suas camas de marmeleiro, onde se encolhiam para sonhar e fazer os filhos, bem satisfeitos. Iam com a chuva nas costas para o serviço e voltavam com a chuva nas costas para a casa. Curavam as doenças com a água fria do céu. Com pouco mais, porém, teriam o milho verde e o macaça maduro para a fartura da barriga cheia.
Estes dias de chuva, agora que a minha tia se fora, me faziam mais triste, mais íntimo comigo mesmo. Acordava de manhã com a chuva correndo na goteira e nem um sinal de pássaro no gameleiro. Estirava-me na cama, pensando na vida. Todos me diziam que eu era um atrasado. Com 12 anos sem saber nada. Havia meninos da minha idade fazendo contas e sabendo as operações. Só mesmo no colégio. Sabia ruindades, puxara demais pelo meu sexo, era um menino prodígio da porcaria. E ali, sozinho, no quarto, os pensamentos maus me conduziam às gostosas masturbações. A negra Luísa me deixara, andava de barriga empinada, com as dificuldades e os medos da primeira cria. Estava prenha e não sabia de quem. Diziam que era de todos os cambiteiros do Santa Rosa.
Olhava muito para um são Luís Gonzaga que a minha tia Maria deixara na parede do quarto. Tinha vergonha dos meus pecados na frente do santo rapaz. Arrependia-me sinceramente daquelas minhas lubricidades de pequena besta assanhada. E no outro dia, enquanto a chuva derramava-se lá por fora, voltavam-me outra vez os pensamentos de diabo. Sujava os olhos do santo com os meus atos imundos de sem-vergonha.
Num dia a chuva parava, e o sol, vingando-se das nuvens escuras que lhe taparam o rosto pegando fogo, brilhava em cima dos matos, como nunca. As tanajuras aproveitavam a trégua para uma passeata por toda parte. Zuniam no pé do ouvido da gente e depois iam arrastar a bunda gorda pelo chão. Mané Firmino comia, torradas, com farinha seca, as tanajuras que pegava.
— Era melhor do que galinha — dizia ele.
Estes dias de estiagem acabavam com o mofo da umidade. Botavam feijão de rama para secar no terreiro. E abriam os baús de roupas pelas calçadas. Ia ver o milho novo apontando no roçado e os bezerrinhos nascidos saltando às doidas pelo curral. As mães ficavam bravas nos primeiros dias do parto, enganjentas dos filhos que tinham. Um sol criador ajudava a terra nos seus trabalhos de mãe. E, se demorasse, as lagartas caíam em cima das folhas das plantações, deixando rente com o chão. Pedia-se então uma pancada d'água de alagar. E começava a chover: os pés de milho crescendo, a cana acamando na várzea, o gado gordo e as vacas parindo.