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A VELHA TOTONHA DE quando em vez batia no engenho. E era um acontecimento para a meninada. Ela vivia de contar histórias de Trancoso. Pequenina e toda engelhada, tão leve que uma ventania poderia carregá-la, andava léguas e léguas a pé, de engenho a engenho, como uma edição viva das Mil e uma noites. Que talento ela possuía para contar as suas histórias, com um jeito admirável de falar em nome de todos os personagens! Sem nem um dente na boca, e com uma voz que dava todos os tons às palavras.

As suas histórias para mim valiam tudo. Ela também sabia escolher o seu auditório. Não gostava de contar para o primo Silvino, porque ele se punha a tagarelar no meio das narrativas. Eu ficava calado, quieto, diante dela. Para este seu ouvinte a velha Totonha não conhecia cansaço. Repetia, contava mais uma, entrava por uma perna de pinto e saía por uma perna de pato, sempre com aquele seu sorriso de avó de gravura dos livros de história. E as suas lendas eram suas, ninguém sabia contar como ela. Havia uma nota pessoal nas modulações de sua voz e uma expressão de humanidade nos reis e nas rainhas dos seus contos. O seu Pequeno Polegar era diferente. A sua avó que engordava os meninos para comer era mais cruel que a das histórias que outros contavam.

A velha Totonha era uma grande artista para dramatizar. Ela subia e descia ao sublime sem forçar as situações, como a coisa mais natural deste mundo. Tinha uma memória de prodígio. Recitava contos inteiros em versos, intercalando de vez em quando pedaços de prosa, como notas explicativas. Havia a história de um homem condenado à morte. Os sinos já dobravam para o desgraçado que caminhava para a forca. Era acusado por crime de morte. Todos os indícios estavam contra ele. E quando o cortejo passava pela porta da casa de sua mulher em lágrimas, um seu filho que mamava tirou a boca do peito, e começou a falar em versos, e descobriu tudo, salvando o pai que ia morrer inocente. Os versos que esse menino recitava, a velha Totonha declamava com uma expressão de dor de arrepiar. As lágrimas vinham-me aos olhos com aquele lamento fanhoso de menino de peito a cantar.

Havia sempre rei e rainha, nos seus contos, e forca e adivinhações. E muito da vida, com as suas maldades e as suas grandezas, a gente encontrava naqueles heróis e naqueles intrigantes, que eram sempre castigados com mortes horríveis. O que fazia a velha Totonha mais curiosa era a cor local que ela punha nos seus descritivos. Quando ela queria pintar um reino era como se estivesse falando dum engenho fabuloso. Os rios e as florestas por onde andavam os seus personagens se pareciam muito com o Paraíba e a Mata do Rolo. O seu Barba-Azul era um senhor de engenho de Pernambuco.

A história da madrasta que enterrara uma menina era a sua obra-prima. O pai saíra para uma viagem comprida, deixando a filha, que ele amava mais do que tudo, com a sua segunda mulher. Quando partiu, encheu a mulher de recomendações para que tivesse todos os cuidados com a filha. Era uma menina de cabelos louros, linda como uma princesa. A madrasta, porém, não queria bem a ela, com os ciúmes do amor de seu marido pela menina. Pegou então a judiar com a bichinha. Era ela quem ia de pote na cabeça buscar água no rio, quem tratava dos porcos, quem varria a casa. Nem tinha mais tempo de brincar com as suas bonecas. Parecia uma criada, com os cabelos maltratados e a roupa suja. Lá um dia a madrasta mandou que ela ficasse debaixo de um pé de figueira, com uma vara na mão espantando os sabiás das frutas. E a menina passava o dia inteiro tangendo os passarinhos com fome. As rolas-lavandeiras, aquelas que lavam a roupa de Nosso Senhor, vinham conversar com ela, contavam-lhe histórias do céu. Mas um dia ela se pôs a olhar para o mundo bonito, para o céu azul e a alegria toda do canto dos pássaros. Na sombra da figueira, com aquele mormaço do meio-dia, adormeceu sonhando com o pai que andava longe e com os brinquedos que traria. E os sabiás pinicaram os figos da figueira. Era o que a madrasta queria. Pegou a menina, deu-lhe uma surra de matar, e a enterrou, ainda viva, na beira do rio. De volta o pai chorou como um desgraçado, com a notícia da morte da filha. A madrasta contou que a menina adoecera desde que ele botara os pés fora de casa:

— Não houve remédio para a pobrezinha.

Uma manhã, porém, o capineiro do engenho saiu para cortar capim para os cavalos. Uma touceira bem verde crescia do meio do capinzal. Ele meteu a serra. Ouviu então de dentro da terra uma voz muito de longe. Pensou que fosse engano de suas ouças, e meteu outra vez a serra. Aí uma voz doída, como a de uma alma sofrendo, levantou-se numa cantiga:

Capineiro de meu pai,
não me corte os meus cabelos.
Minha mãe me penteou,
minha madrasta me enterrou,
pelos figos da figueira
que o passarinho picou.

O capineiro assombrado correu para chamar o senhor de engenho. E voltaram com a enxada, e cavaram a terra. A menina estava verde como uma folha de mato. Os cabelos crescidos em touceiras de capim de planta. Os olhos cheios de terra. E as unhas das mãos pretas e enormes. O senhor de engenho chorou feito um doido, abraçando e beijando a filhinha. No engenho foi uma festa que durou muitos dias. Os negros dançaram coco duas semanas. Muitos escravos tiveram carta de alforria. E amarraram a madrasta nas pernas de dois poldros brabos. Os pedaços dela ficaram pela estrada, fedendo.

Havia também umas viagens de Jesus Cristo com os apóstolos. Chegava Jesus para dormir num rancho com os seus companheiros. Os donos da casa eram pobres de fazer pena. Nem um pedaço de pão tinham para os hóspedes. Jesus mandou Pedro buscar o saco que ficara com os mantimentos.

— Mestre, o saco está vazio.

— Homem de pouca fé, vai ver o saco.

São Pedro sabia que deixara o saco sem coisa nenhuma, mas foi. E encontrou duas cargas de farinha e de carne na porta.

São Pedro nestas histórias era um homem que só acreditava no que via e estava sempre levando carão de Nosso Senhor.

A velha Totonha sabia um poema a propósito do naufrágio do paquete Bahia nas costas de Pernambuco. Um náufrago contando o que vira do desastre:

Oh que dia de juízo!
Oh que dia de horror!
Só as pedras não choravam,
porque não sentiam dor...
Ó mestres e contramestres,
pilotos e capitão,
vamos ver nosso Bahia
se quer afundar ou não.

Incidente por incidente eram narrados nestes versos: meninos agarrados com as mães em pranto; um choro agoniado de gente que vai morrer; a água entrando por dentro do navio; uma velha se salvando num garajau de galinhas; um homem rico chamado Pataca Lisa correndo para dentro do camarote para buscar um pacote de dinheiro e não voltando mais; foi ao fundo com a sua riqueza. Todo o poema era uma abundância de detalhes. E na voz plástica da velha, a tragédia parecia a dois passos de nós. Ficava arrepiado com esse canto soturno. Vinha-me então um medo antecipado de embarcar em navios, pelo horror das cenas do naufrágio desse pobre Bahia.

Depois sinhá Totonha saía para outros engenhos, e eu ficava esperando pelo dia em que ela voltasse, com as suas histórias sempre novas para mim. Porque ela possuía um pedaço do gênio que não envelhece.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora