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— AMANHÃ VAMOS PASSAR o dia no Oiteiro.

Fui dormir assim com a viagem na cabeça. Estes passeios a outros engenhos de bem perto eu os fazia com alegria, de todo o coração.

De manhã bem cedo já estávamos prontos, com o carro de boi na porta. Cobriam o carro com uma esteira de piripiri e forravam as tábuas de sua mesa com um colchão. Era a nossa carruagem ronceira, mas segura. O carreiro Miguel Targino, grande e agigantado como um são Cristóvão, capaz de tirar sozinho o seu carro de um valado, já estava de vara e macaca, esperando o povo para a viagem. Quando a família saía a passeio, chamava-se ele para carrear. Todos os seus irmãos eram mestres carreiros: Chico, João e Pedro Targino. Ele, porém, fazia os serviços da casa-grande. O gado na sua mão não apanhava, e ele não ficava sentado na mesa, deixando o carro ao deus-dará. Nunca dera uma virada. Punha-se de vara na mão chamando os bois de cambão para os atalhos, desviando as rodeiras das pedras da estrada:

— Ei, Labareda! Ei, Medalha!

E nós saíamos para a grande viagem, com a gente grande sentada e os meninos dependurados pela mesa do carro, pedindo de quando em vez a Miguel Targino a macaca para tanger os bois do coice. Chamavam-se Medalha e Javanês os do coice, grandes e largos para bem aguentarem o peso e sustentarem as manobras; Estrela e Labareda os do cambão, pequenos e de pescoços compridos, ágeis, os verdadeiros motores do carro. Para estes a vara de ferrão, e a macaca para os do coice. E eles todos atendiam à voz do carreiro. Quando o Miguel Targino fazia um "ô" descansado, os do coice enterravam os pés na areia, e ninguém arrastava o carro dali. E com um "ei, Labareda", de ordem, os do cambão espichavam o pescoço na canga, e lá ia o carro andando.

Ainda tudo estava escuro com a madrugada. A névoa dos altos chegava até os cajueiros. Tudo parecia branco daquele lado, como grandes paióis de algodão. Pelo curral começavam a tirar o leite; ouvia-se o bate-boca dos moleques na manjedoura. Mas o carro já deixara o cercado do engenho, ganhava a estrada de São Miguel. Vinham cargueiros com sacos brancos de farinha e caçuás cheios de louças de barro para a feira do Pilar. O chicote deles estalava naquele silêncio bom da madrugada. Passava-se por casas de moradores ainda com as portas fechadas; os homens, nus da cintura para cima, já estavam olhando o tempo, enquanto os meninos e a mulher se encolhiam no pobre quente das camas de vara. Os bogaris das biqueiras cheiravam no ar frio. Galinhas empoleiradas em pés de pau, com preguiça de deixar o seu sobrado de galhos. Mais adiante o sol espelhava pelos partidos, esquentando a folha da cana ainda pingando de orvalho. As casas dos moradores abertas, de porta e janela, com a família inteira no terreiro tomando o seu banho de sol, de graça. Às vezes o carro parava para minha tia falar com as comadres, que vinham alegríssimas dar duas palavras com a senhora. E os meninos de camisa comprida tomando a bênção à madrinha.

— Deus te abençoe.

E eram mesmo abençoados por Deus, porque não morriam de fome e tinham o sol, a lua, o rio, a chuva e as estrelas para brinquedos que não se quebravam.

Depois o carro saía — e a casa toda ficava nos olhando até dobrar na curva da estrada. Botavam sabão nos cocões, que começavam a chiar. Carro levando gente não cantava: rodava mundo pelos caminhos. Agora batia-se a porteira do Engenho Maravalha. A estrada passava roçando a casa-grande.

— É carro do Santa Rosa.

E corriam as primas para falar com a tia Maria.

Deviam se apear. Tomar café. Chegariam no Oiteiro muito cedo.

Perguntavam por tudo. E a tia Neném, magrinha, querendo saber de José Paulino e por que não viera a Sinhazinha. Falavam ao mesmo tempo. Mas tia Maria saltaria na volta. E o carro partiu, com promessas de que à noitinha ficaríamos em Maravalha para a ceia.

O Oiteiro estava bem perto. Passávamos já pelo balde do açude, coberto de folhas de baronesa. E via-se o sobrado branco aparecendo com os pilares de seu alpendre. Os moleques abriam a porteira para o carro. O povo da casa corria para nos receber. Era uma festa da cozinha à sala de visitas. Levaram a tia Maria para mudar o vestido da viagem. Ofereciam roupas de casa para vestir, davam aos meninos fofas dos outros. As negras do Santa Rosa todas metidas no seu vestido de recepção, em conversas pela cozinha.

Para nós o Oiteiro tinha muito que ver. O senhor de engenho de lá, um primo do meu avô, o coronel Lola, morrera deixando um palácio para os seus. Era a melhor casa de morada da ribeira do Paraíba. Tinha água encanada até na horta. E banheiro de torneira para os criados. O engenho bem-tratado, com um sobradinho de varanda para se olhar o serviço.

O dia que passávamos ali anoitecia depressa. Em cima do sobrado um corta-vento puxava água para os tanques da serventia. Para mim, aquele ruído do moinho, o batuque compassado dos canos, parecia uma música.

Nós mexíamos por todos os canos, com a liberdade que a cerimônia dava às visitas. E os meus primos pequenos de lá abriam-se em gentilezas. Não ficava nada que não víssemos. Havia uma caixa de música, com uns cilindros cheios de espinhos, que me deslumbrava com o Trovador e o Carnaval de Veneza. O meu grande número de concerto era o Trovador. Aquela monotonia de canto de igreja tocava a minha precoce melancolia. Pensava sempre em minha mãe diante de qualquer coisa triste da vida. Esta lembrança vinha-me acompanhando em todos os caminhos da minha sensibilidade em formação.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora