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A MINHA PRIMEIRA PAIXÃO tinha sido pela bela Judite, que me ensinara as letras no seu colo. O meu coração de oito anos agora se arrebatava com mais violência. Estavam no engenho passando uns tempos umas parentas de Recife. Era uma gente que não tirava as meias da manhã à noite, falava francês uma com a outra, só conversava negócios de teatro: o tenor tal, que belo homem!, a artista fulana, que chique!

As filhas do tio João, quando chegavam no engenho, revolucionavam os hábitos pacatos da casa-grande. Só viviam trancadas nos banhos mornos, dando trabalho às negras, lendo romances nas cadeiras de balanço. Punham esteiras de piripiri por cima dos quartos delas, porque tinham medo da telha-vã: podia cair bicho de lá. Os moleques passavam o dia inteiro espantando os sapos das calçadas. Elas corriam das baratas, aos gritos. E até em nós esta influência se exercia: não tirávamos os sapatos dos pés, por causa da gente do Recife. A tia Maria desdobrava-se em cuidados, temendo a língua das parentas civilizadas. Uma delas dissera em carta para uma amiga da cidade que o povo do Santa Rosa só tinha de gente os olhos. E enchiam a casa de chiliques e de cheiros de extrato. Aos domingos iam de chapéu à missa do Pilar. E censuravam o pessoal do engenho, porque, a meia-légua da igreja, ficava em casa nos dias de obrigação.

— José Paulino é um herege, e cria essa gente daqui como bichos. O menino de Clarisse nem fez primeira comunhão.

O meu avô ouvia as primas com aquele sorriso de justo. Ele sentia-se bem amigo de Deus com o coração de bom que era o dele. A grita de suas primas devotas não lhe doía na consciência.

O Santa Rosa com as meninas do tio João parecia outro. A sala de visitas aberta o dia inteiro, as negras conversando baixo na cozinha, a tia Maria de vestido de passeio, os moleques pequenos, vestidos, sem as bimbinhas de fora. Às tardes, visitas de outros engenhos; brinquedos de prendas de noite, conversas sobre a moda e queijo do reino na mesa. Até o meu avô sem os seus gritos e palavrões para os moleques da estrada.

Para mim, a visita viera me aperrear o coração de menino. Maria Clara, mais velha do que eu, andava comigo pela horta. Menina da cidade, encontrara um bedéquer amoroso para mostrar-lhe os recantos do Santa Rosa. Queria ver tudo — o rio, os cajueiros, o cercado. Maria Clara, com aqueles seus cabelos em cachos e uns olhos grandes e redondos, me fizera esquecer o carneiro e os passeios solitários. Brincávamos juntos, comíamos juntos, que todo mundo reparava nesse pegadio constante. Ela me contava as histórias de suas viagens de mar, pintava-me o vapor, os camarotes, o tombadilho e o mar batendo no olho de vidro das vigias.

— Não havia perigo, parecia que se estava em casa. Havia mesa para os meninos e gente grande. E banho de chuvisco. Passavam-se dias só se vendo céu e mar.

Sentávamos por debaixo dos gameleiros, nestas conversas compridas. Eu também contava as minhas coisas de engenho: o fogo no partido, a cheia cobrindo tudo d'água. Exagerava-me para parecer impressionante à minha prima viajada. Ali mesmo onde estava sentada, o rio passara com mais de nado. A canoa se amarrara no gameleiro.

As nossas conversas iam longe. Maria Clara indagava por Antônio Silvino. Então me derramava em histórias. O cangaceiro se encantava em bicho. Uma tropa vinha atrás dele, e o que encontrava era um rebanho de carneiros. Uma vez matara uma onça numa luta corpo a corpo; quando não podia mais com a fera, lembrou-se do punhal: meteu o chapéu de couro no focinho da onça e enfiou-lhe a arma no coração. O couro desta onça era aquele que meu avô tinha na sala.

Procurávamos a sombra dos cajueiros para os nossos colóquios. Havia folhas secas pelo chão, como um grande tapete cinzento, que rangiam nos pés. E o cheiro gostoso da flor do caju chegava até longe.

— Vamos fazer piquenique nos cajueiros.

Levávamos merenda, pedaços de pão e queijo, que as formigas comiam. Maria Clara me olhava séria, me pegava nas mãos, perguntando o que a gente faria ali se Antônio Silvino aparecesse.

— Ele casava a gente.

E me contava cena por cena das fitas de cinema que vira, dos amores dos seus heróis prediletos e dos casamentos bonitos que faziam.

Os galos de campina cantavam bem perto de nós os seus números de sucesso. E os concriz pinicavam os cajus vermelhos, chiando de gozo.

— O engenho é melhor do que o Recife — me dizia Maria Clara. — Mamãe conta que morando aqui a gente vira bicho. Ela quer que eu toque piano e fale francês. Aqui é bom porque não tem aula, não tem professora.

Uma ocasião, depois que ela terminou uma fita de dois namorados deitados na relva, nos braços um do outro, eu peguei Maria Clara e beijei-a forte na boca. Corri como um doido para casa, com o coração batendo.

— Este menino fez arte. Chega estar afrontado — repararam, quando apareci na cozinha.

Escondi-me da namorada o resto da tarde. Na hora da ceia, ela estava com os seus olhos redondos e pretos, olhando para mim. A noite toda foi um sonho só com Maria Clara. Ia com ela no navio não sei por onde. E o mar batia com raiva no meu barco. Chovia que a água começava a encher o casco. Só se via mar e céu. Eu tinha medo de afundar. Maria Clara dizia que não havia perigo. E nós chegávamos nos cajueiros e ficávamos nas folhas secas, dormindo.

Um dia ela me chamou para ver uma coisa: a canalha do curral estava em amor livre, num canto da cerca. Tirei a minha namorada dali. Aquilo era porcaria para os seus olhos limpinhos. E o meu amor crescia, dilatava o meu verde coração de menino.

As meninas do tio João já estavam em despedidas. Para a semana voltariam para Recife. De engenho a engenho andavam passando dias. E chegavam presentes de toda parte: rendas da terra, colchas bordadas, panos de filé. Os bichos dos engenhos gostavam das primas assanhadas.

A viagem seria na terça-feira. Depois de amanhã não veria mais a minha companheira. Fizemos os idílios derradeiros, correndo os nossos recantos preferidos, como um casal de namorados de livro.

De manhã, o carro de boi saía com o povo para a estação. As meninas de tio João dando dinheiro às negras, a velha Generosa chorando, todos na sala em abraços e beijos. O tio Juca iria com a tia Maria à estação. Para menino não havia lugar. Maria Clara nem parecia que me queria bem, toda satisfeita, sentada no carro. Pensava que ela estivesse triste como eu. Mas qual! Alegre com a viagem, bem contente no meio do alvoroço das despedidas.

Já saíam do terreiro, ganhando a estrada. Corri para as estacas do cercado a fim de olhar ainda o carro. Trepei-me na cerca até que se sumisse a carruagem com a minha ingrata. Quando cheguei, de volta, não sei quem, na cozinha:

— Ficou sem namorada, hein?

As lágrimas chegaram-me aos olhos, e disparei num choro que não contive. Foi a graça da casa durante o dia. Na mesa contaram ao meu avô. O velho José Paulino riu-se:

— A quem puxou este menino assim namorador?

E o meu amor ficava na conversa de toda gente.

Dormi à noite, com Maria Clara junto de mim. Os sonhos de um menino apaixonado são sempre os mesmos. Acordei-me, porém, com a primeira angústia de minha vida. Os pássaros cantavam tão alegres no gameleiro, porque talvez não soubessem da minha dor. Senti nesse meu despertar de namorado um vazio doloroso no coração. Tinha perdido a minha companheira dos cajueiros. E chorei ali entre os meus lençóis lágrimas que o amor faria ainda muito correr dos meus olhos.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora