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NO DIA SEGUINTE TOMARIA o trem para o colégio. O meu tio Juca me levaria para os padres, deixando carta branca a meu respeito.

Acordei com os pássaros cantando no gameleiro. Tocavam dobrados ao meu bota-fora. E uma saudade antecipada do engenho me pegou em cima da cama. Vieram-me acordar. Há tempo que estava de olhos abertos na companhia de meus pensamentos. Uma outra vida ia começar para mim.

— Colégio amansa menino!

Em mim havia muita coisa precisando de freios e de chibata. As negras diziam que eu tinha o mal dentro. A tia Sinhazinha falava dos meus atrasos. Os homens riam-se das intemperanças dos meus 12 anos.

— Menino safado, menino atrasado, menino vadio!

O meu puxado entrava e saía sem ninguém dar por ele. Ia ficando bom com a idade. E nada de Deus por dentro de mim. Era indiferente aos castigos do céu. Os lobisomens faziam-me mais medo. A minha religião não conhecia os pecados e as penitências. O pavor do inferno, eu confundia com os castigos dos contos de Trancoso. Tudo entrava por uma perna de pinto e saía por uma perna de pato. Ia para a cama sem um pelo-sinal e acordava sem uma ave-maria. O meu são Luís Gonzaga devia olhar com nojo para o seu irmão afundado na lama.

Agora o colégio iria consertar o desmantelo desta alma descida demais para a terra. Iriam podar os galhos de uma árvore, para que os seus brotos crescessem para cima.

— Quando voltar do colégio, vem outro, nem parece o mesmo.

Todo mundo acreditava nisto. Este outro, de que tanto falavam, seria o sonho da minha mãe. O Carlinhos que ela desejava ter como filho. Esta lembrança me animava para a vida nova.

— Vá se vestir.

A minha mala seguira na cabeça do Zé Guedes para a estação. Iríamos depois a cavalo. E nesta viagem, beirando os partidos de cana, passando pela porta dos moradores, a minha saudade se demorava por toda parte.

— O seu Carlinhos vai pro colégio.

E vinham os moleques olhar para mim. O tio Juca na frente, e eu ronceiro, sentindo em cada passo do Coringa o engenho que se ficava para trás.

Na porta de Zefa Cajá só se viam uns panos estendidos no sol. A casa de portas fechadas, e mulheres de pano na cabeça, no roçado de perto. Um sol de nove horas enxugava a terra ensopada da chuva da noite. A enxada limpava o mato bonzinho de cortar. Os pés do povo deixavam o seu tamanho no barro mole da estrada. Lá vinha um moleque com uma carga de milho, com a folha verde arrastando no chão. Ia para a canjica e as pamonhas da negra Generosa.

O engenho dava-me assim as suas despedidas, como os namorados, fazendo os derradeiros agrados.

Na estação estava o povo de Angico esperando o trem.

— Vai pro colégio, já estava em tempo.

As mulheres me achavam parecido com a Clarisse. Os homens conversavam com o tio Juca. Já sabiam da minha doença, e me chamavam para as perguntas inconvenientes.

O trem pedira licença de Itabaiana, partira do Pilar. A gente o via se enroscando na curva do Engenho Novo. Depois, sumindo no corte, roncava perto. O poste de sinal caía. E chegava, apertando os passos, na plataforma.

— Fique deste lado para ver o pessoal do engenho.

E o trem saiu, correndo por entre os canaviais e os roçados de algodão do meu avô.

Chegava gente na porta para ver o horário em disparada. O povo da Lagoa Preta no alpendre, olhando. O homem do correio sacudia a correspondência na porta. E o trem entrava pelos cortes e saía nos aterros da várzea, separando a água das lagoas improvisadas no inverno.

Longe via o bueiro comprido do Oiteiro e o corta-vento trepado no sobrado. O gado pastava pela beira da linha.

— Zebu bonito!

Os bois levantavam a cabeça da rama gostosa para ver também o trem correndo. Com pouco mais apitou na rampa do Caboclo. Lá estava o Santa Rosa com o bueiro branco e a casa-grande rodeada de pilares. Os moleques estavam na beira da linha para me ver passar.

— Adeus, adeus, adeus! — com as mãos para mim.

E eu com o lenço, sacudindo. Os olhos se encheram de lágrimas. Cortava-me a alma a saudade do meu engenho.

E o trem corria para o Entroncamento. Vinha Santana, Maraú no alto. Maçangana com o coronel Trombone na porta. A máquina tomava água. O trem de Guarabira chegava, mais curto que o nosso. Apareciam passageiros de guarda-pó para conversar com os outros do nosso carro.

Todo esse movimento me vencia a saudade dos meus campos, dos meus pastos. Queriam me endireitar, fazer de mim um homem instruído. Quando saí de casa, o velho José Paulino me disse:

— Não vá perder o seu tempo. Estude, que não se arrepende.

Eu não sabia nada. Levava para o colégio um corpo sacudido pelas paixões de homem feito e uma alma mais velha do que o meu corpo. Aquele Sérgio, de Raul Pompeia, entrava no internato de cabelos grandes e com uma alma de anjo cheirando a virgindade. Eu não: era sabendo de tudo, era adiantado nos anos, que ia atravessar as portas do meu colégio.

Menino perdido, menino de engenho.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora