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RESTAVA AINDA A SENZALA dos tempos do cativeiro. Uns vinte quartos com o mesmo alpendre na frente. As negras do meu avô, mesmo depois da abolição, ficaram todas no engenho, não deixaram a rua, como elas chamavam a senzala. E ali foram morrendo de velhas. Conheci umas quatro: Maria Gorda, Generosa, Galdina e Romana. O meu avô continuava a dar-lhes de comer e vestir. E elas a trabalharem de graça, com a mesma alegria da escravidão. As suas filhas e netas iam-lhes sucedendo na servidão, com o mesmo amor à casa-grande e a mesma passividade de bons animais domésticos. Na rua a meninada do engenho encontrava os seus amigos: os moleques, que eram os companheiros, e as negras que lhes deram os peitos para mamar; as boas servas nos braços de quem se criaram. Ali vivíamos misturados com eles, levando carão das negras mais velhas, iguais aos seus filhos moleques, na partilha de seus carinhos e de suas zangas. Nós não éramos seus irmãos de leite? Eu não tivera estes irmãos porque nascera na cidade, longe da salubridade daqueles úberes de boas turinas. Mas a mãe de leite de d. Clarisse, a tia Generosa, como a chamávamos, fazia as vezes de minha avó. Toda cheia de cuidados comigo, brigava com os outros por minha causa. Quando se reclamava tanta parcialidade a meu favor, ela só tinha uma resposta:

— Coitadinho, não tem mãe.

Nós mexíamos pela senzala, nos baús velhos das negras, nas locas que elas faziam pelas paredes de taipa, para os seus cofres, e onde elas guardavam os seus rosários, os seus ouros falsificados, os seus bentos milagrosos.

Nas paredes de barro havia sempre santos dependurados, e num canto a cama de tábuas duras, onde há mais de um século faziam o seu coito e pariam os seus filhos.

Não conheci marido de nenhuma, e no entanto viviam de barriga enorme, perpetuando a espécie sem previdência e sem medo. Os moleques dormiam nas redes fedorentas; o quarto todo cheirava horrivelmente a mictório. Via-se o chão úmido das urinas da noite. Mas era ali onde estávamos satisfeitos, como se ocupássemos aposentos de luxo.

O interessante era que nós, os da casa-grande, andávamos atrás dos moleques. Eles nos dirigiam, mandavam mesmo em todas as nossas brincadeiras, porque sabiam nadar como peixes, andavam a cavalo de todo jeito, matavam pássaros de bodoque, tomavam banho a todas as horas e não pediam ordem para sair para onde quisessem. Tudo eles sabiam fazer melhor do que a gente; soltar papagaio, brincar de pião, jogar castanha. Só não sabiam ler. Mas isto, para nós, também não parecia grande coisa. Queríamos viver soltos, com o pé no chão e a cabeça no tempo, senhores da liberdade que os moleques gozavam a todas as horas. E eles às vezes abusavam deste poderio, da fascinação que exerciam. Pediam-nos para furtar coisas da casa-grande para eles: laranjas, sapotis, pedaços de queijo. Trocavam conosco os seus bodoques e os seus piões pelos gêneros que roubávamos da despensa. E nos iniciavam nas conversas picantes sobre as coisas do sexo. Por eles comecei a entender o que os homens faziam com as mulheres, por onde nasciam os meninos. Eram uns ótimos repetidores de história natural. Andávamos juntos nas nossas libertinagens pelo cercado. Havia um quarto dos carros onde iam ficando os veículos velhos do engenho. Dali fazíamos uma espécie de lupanar para jardim de infância. A nossa doce inocência perdia-se assim nessas conversas bestas, no contato libidinoso com os moleques da bagaceira. As negras, porém, nos respeitavam. Não abriam a boca para imoralidade na frente da gente. Estavam elas nas suas palestras de intimidade de cada uma, e mal nos viam mudavam de assunto. E no entanto recebiam os seus homens no quarto com os filhos. O meu primo Silvino nos contou um dia o que vira no quarto da negra Francisca:

— Zé Guedes numa cama de vara ringindo.

E todo ano pariam o seu filho. Avelina tinha filho do Zé Ludovina, do João Miguel destilador, do Manuel Pedro purgador. Herdavam das mães escravas esta fecundidade de boas parideiras. Eu vivia assim, no meio dessa gente, sabendo de tudo o que faziam, sabendo de seus homens, de suas brigas, de suas doenças.

No quarto da negra Maria Gorda não se podia entrar. Nunca conseguíamos nos aproximar desta velha africana. Ela não sabia falar, articulava uma meia-língua, e na hora do almoço e do jantar saía da loca pendida em cima de uma vara para buscar a ração. Gritava com os moleques e as negras, com aqueles beiços caídos e os peitos moles dependurados. Era de Moçambique, e com mais de oitenta anos no Brasil, falava uma mistura da língua dela com não sei o quê. Esta velha fazia-me medo. As fadas perigosas dos contos da sinhá Totonha tinham muito dela. O seu quarto fedia como carniça. Na noite de são João era na sua porta somente que não acendiam fogueira. O diabo dançava com ela a noite inteira. Eu mesmo pensava que a negra tivesse qualquer coisa infernal, porque nela nada senti, nunca, de humano, de parecido com gente. Todos na rua temiam a Maria Gorda. À tardinha sentava-se num caixão à porta de casa, para fumar o seu cachimbo de canudo comprido; mas ficava sozinha, resmungando ninguém sabe o quê.

A velha Galdina era outra coisa. Africana também, de Angola, andava de muletas, pois quebrara uma perna fazendo cabra-cega para brincar com os meninos. Fora ama de braço de meu avô, e todos nós a chamávamos de vovó. As negras queriam-lhe um bem muito grande. A tia Galdina era para elas uma espécie de dona da rua. Não se falava com ela gritando, e davam-lhe o tratamento de vossa mercê. Eu vivia em conversa com ela, atrás das suas histórias da costa da África. Viera de lá com dez anos. Furtaram-na do pai. Um seu irmão a vendera aos compradores de negros, e marcaram-na no rosto a ferro em brasa. Contava a sua viagem de muitos dias: os negros amarrados e os meninos soltos; de dia botavam todos para tomar sol onde viam o céu e o mar. Já estava contente com aquela vida de navio. O veleiro corria como o vapor na linha. E um dia chegaram em terra. Ela passou muito tempo ainda para ser comprada. Os homens que vinham queriam mais gente grande e molecas taludas.

A vovó contava que via almas, pássaros brancos batendo asas pelas paredes. Na viagem, estas almas, de noite, ficavam voando por cima dos negros amarrados. E nos ensinava uns restos de palavras que ela ainda sabia de sua língua. Na noite de Natal botavam os bois no carro para a velha Galdina ir ouvir missa no Pilar. E davam colchões velhos para a cama dela. Por qualquer coisa chorava como uma criança. Quando queriam pegar a gente para uma surra, era para junto dela que corríamos. Ela pedia pelos seus netos com os olhos cheios de lágrimas.

A velha Generosa cozinhava para a casa-grande. Ninguém mexia num cacareco da cozinha a não ser ela. E viessem se meter nos seus serviços, que tomavam gritos, fosse mesmo gente da sala. Tinha não sei quantos filhos e netos. Negra alta e com braços de homem, tirava uma tacha de doce do fogo, sem pedir ajuda a ninguém. Só falava gritando, mas nós tínhamos tudo o que queríamos dela. A negra Generosa era boa como os seus doces e as suas canjicas. Era só pedir as coisas no seu ouvido, e ela nos dar, sem ligar importância às impertinências da velha Sinhazinha.

— Quem quisesse mandar na cozinha que viesse para a boca do fogo.

E quando iam reclamar qualquer coisa, saía-se com quatro pedras na mão:

— Que se quisessem era assim. Tempos de cativeiro já tinham passado.

Distribuía com os moleques do pastoreador as rações de carne de ceará e farinha seca. E o fazia aos gritos, chamando "severgonho" a todos eles. Não se importavam, porém, com esta raiva da velha Generosa. Os moleques sabiam que o coração dela era um torrão de açúcar. Pois dava remédios para as suas tosses e as suas feridas, e remendava-lhes os farrapos das roupas.

A senzala do Santa Rosa não desaparecera com a abolição. Ela continuava pegada à casa-grande, com as suas negras parindo, as boas amas de leite e os bons cabras do eito.

Menino de Engenho (1932)Onde histórias criam vida. Descubra agora