36 - AUGUSTO SPERANZI

96 22 0
                                    


Nas duas semanas que se seguiram, fiquei surpreso com nossa interação profissional. Ela ficou mais na pista de testes e com isso tive a sensação que não sinto tanto a sua falta.

Amapola estava mais falante, mais receptiva, diferente dos nossos embates. Cada vez mais eu quero fazer parte da sua vida e quero que ela faça parte da minha. Preciso criar coragem para conversar sobre isso. Ela disse que precisa de mais e eu me sinto seguro para assumir um relacionamento.

Mas o destino não cooperou conosco.

Quando chegamos em Porto Alegre na quinta-feira para os treinos, o carro de Amapola está com problemas. Apesar da competência da equipe, o defeito não foi totalmente contornado até a classificatória e ela ficou em sexto lugar no grid de largada. Quando ela volta das pistas, bem mal-humorada, foi a minha vez de correr e atingir a marca da melhor volta. É minha primeira pole position em cinco anos e eu vibrei muito quando cheguei ao boxe.

Amapola me abraça, sorri para mim e está feliz com a minha performance.

— E o seu carro?

— Acredita que eu não sei ainda qual o problema dele. Está perdendo rendimento quando atinge cento e oitenta. — O pessoal do marketing me chama para uma entrevista e assim não encontro Amapola depois das classificatórias.

Estamos no mesmo hotel, mas agora as coisas ficaram um pouco mais difíceis. Ambos vamos correr e o que quero dela é muito mais do que sexo.

Ao chegar ao autódromo no domingo, mais uma vez nossos caminhos são desviados. Eu vou para a coletiva e Amapola ainda está com problemas no carro. Quando vamos para a pista, trocamos apenas algumas palavras de incentivo.

A nossa briga é nas pistas. Ao largar na pole, consigo me manter em primeiro nas primeiras voltas, mas preciso ir para um pit stop por conta de um toque com outro carro. Isso me faz perder posições. Mantenho-me em terceiro até vê-la no meu retrovisor. E ela não está para brincadeira. Chega bem próximo e tenta me ultrapassar. Eu seguro a posição. Na próxima investida, faltando duas voltas para o final, ela vem com tudo e naquela hora, se eu faço a frenagem e a tangente, ela não segura o carro, aconteceria o toque e provavelmente os dois estariam fora. Faço o que acho certo porque eu não quero ficar de fora sem pontuar. Tiro o pé e ela me ultrapassa com segurança, assumindo a terceira posição e me deixando fora do pódio. Eu vou para a garagem e ela vai para o pódio.

Já estou trocado quando ela retorna e pelo seu olhar a conversa não será nada agradável. Ainda tem muitas pessoas na garagem. Ela enfia o dedo no meu peito.

— Qual o problema com você, Speranzi? — Não espera que eu responda. É a primeira vez que a vejo tão agressiva. Isso me assusta.

— Ahh... espera, deixe-me adivinhar. Eu sou mulher, não é. Não tenho um pau no meio das pernas, então não posso ser levada a sério. Claro, piloto, também sou sua líder e o líder tem que andar na frente, não pode ser deixada para trás. — Ela anda na oficina e aponta para todos, que estão meio espantados com a sua atitude. — Ninguém aqui gosta de ser comandado por uma mulher, falem a verdade. Nem sempre gostei de estar aqui. — Ela volta a atenção para mim.

— Eu não tive escolha. Passei a minha vida toda ouvindo que por ser mulher, nunca daria orgulho ao meu pai. Ele nunca teria um sucessor e blá-blá-blá... E agora, você está agindo igualzinho a ele, Guto. Deixou que eu o ultrapassasse. Tirou o pé. Eu não mereço isso. Eu não quero isso para mim. — Lágrimas escorrem no seu rosto e eu começo a enxergar porque ela sempre é autossuficiente.

— Sabe quantas vezes ele esteve aqui nos boxes para me ver correr? Nenhuma, ou melhor, a primeira corrida foi a que você estreou, o homem que ele quer na sua escuderia. Eu nunca vou ser o bastante, apesar de fazer tudo melhor que um homem.

— Chega, Amapola. — Tento pará-la de se autodepreciar.

— Ainda não, piloto. Lá na pista, eu sou uma competidora como outro qualquer. Não aceito ser diferente do que sou. Se você tiver que me jogar para fora, foda-se, me jogue. Só não faça de novo o que fez hoje. Eu sei perder e sei me defender, não preciso que homem nenhum me proteja. Não entregaria a minha posição para o homem que amo. Nem mesmo para ele. — Ela entra na sala dela e bate à porta. Vários olhos estão sobre mim.

— Vamos dispersar, pessoal. Amapola está certa. Temos que fazer a nossa parte. — Assim eles voltam a trabalhar, cochichando entre eles. Espero que não tenha nenhum fofoqueiro entre nós.

Entro na minha sala e me jogo no sofá. Sempre achei que o seu desejo de perfeição fazia parte da sua personalidade. Nunca pensei que seria uma maneira de agradar o pai que provavelmente deixou claro que queria um filho homem em algum momento da vida.

E ela está certa. Se fosse outra pessoa na minha cola, nem fodendo que eu deixaria me ultrapassar. Nem que fossem os dois para fora eu não entregaria minha posição.

Fiz exatamente igual ao seu pai e a decepcionei da mesma maneira. Mesmo que cheio de boas intenções, agi igualzinho a um filho da puta machista. Não posso fazer isso de novo e tenho que arrumar um jeito de desfazer esse mal-estar que ficou presente.

Ela disse que me ama e eu também a amo. Só pode ser amor essa urgência de estar junto, de sentir sua boca na minha. Essa ligação que temos com a velocidade, com as máquinas e com a dor. Não posso viver mais sem ela. Minha vida perderá o sentido se o que construímos juntos acabar. Nem percebi que ela é tão importante para mim. Tão importante que se eu tiver que escolher as pistas ou Amapola, com certeza Amapola será escolhida.

Isso me emudece.

Eu nunca tive tanta certeza dos meus sentimentos. Só quero fazer as coisas certas dessa vez.

PAIXÃO NO RETROVISOROnde histórias criam vida. Descubra agora