14 - GUTO SPERANZI

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Saber que não fui esquecido foi o ponto alto da corrida. Não consegui passar despercebido por onde andei. Foram inúmeras perguntas feitas por jornalistas, fãs e pilotos. Para todos eu mantive a lesão como o pivô da desistência das pistas.

Mas eu não quero manter essa mentira para Amapola Fischer. O amor pelas pistas que vejo nela, é o mesmo amor que tenho dentro do peito. Antes que ela me questione o abandono, porque ela já percebeu que eu estou em perfeitas condições físicas até para esquiar nos Alpes se tiver vontade, além do mais eu não quero mais mentir.

Também não quero influenciar sua decisão sobre o fim do noivado, esperançosa de termos alguma relação que não seja essa tensão sexual que nos ronda. Encontro-a na garagem depois da sua festa da vitória.

— Como foi o seu dia, Guto? Gostou de voltar em Interlagos, onde foi campeão?

— Você andou assistindo minhas corridas, acertei? — Ela abre o frigobar e tira de lá um champagne. Pega duas taças no armário e me entrega a garrafa.

— Quase todas, piloto. Mais de uma vez, se quer saber. Eu não entendo por qual razão você deixou tudo para trás. Tudo bem, teve o acidente, mas isso no máximo, te deixaria fora das pistas o resto da temporada. Não fora delas até hoje. — Eu encho as taças e brindamos a sua vitória.

— Eu vou te contar a verdade. — Ela se joga no sofá. — Quer conversar aqui? — Ela fita o ambiente.

— Aqui é minha segunda casa. Já dormi nesse sofá, cuidando do meu bebê muitas vezes. Tá tranquilo, tenho seguranças lá fora. Estaremos de boa aqui. Assim, na hora de irmos embora, não terá nenhum repórter ou mesmo paparazzi nos esperando. Preciso manter o anonimato.

— Desculpe, princesa. Você já é bem conhecida por aí.

— Ser mascarada me dá um charme a mais, piloto. Vai por mim. Agora conte o que te fez abandonar as pistas.

— Okay, vamos lá. Vou encher a minha taça para tomar coragem.

— Se capotar, te largo aí.

— Também já dormi muito em sofá de garagem. — Sento-me na outra ponta do sofá.

— Eu estava começando a aparecer na mídia com as minhas corridas de recuperação e ultrapassagens arriscadas quando conheci a minha ex-mulher, Nataly. Ela sempre estava nos bastidores das corridas e eu a apreciava há algum tempo. Sabia que ela tinha alguém da família que fazia parte do automobilismo. Achei que era irmã de piloto ou algo assim. Nunca passou pela minha cabeça que seu pai era alguém tão importante. Nunca imaginei que ela era filha do mandachuva do automobilismo. Frank Morgano é o nome dele.

Uau... o cara mais poderoso do ramo automobilístico e o mais arrogante também.

— Também nem me preocupei em averiguar quem era ela, nós apenas conversávamos e nos divertíamos falando dos outros dali. Eu fiquei deslumbrado por ela. Linda, loira, gostosa à beça e legal demais com um cara de vinte e cinco anos, vindo de classe média, que deu um duro danado para chegar ali. Eu percebi que ela tinha berço, principalmente porque vivia vestida com roupas de grife e cheia de joias. Quando ela me beijou pela primeira vez, me apaixonei louca e cegamente. Ela sabia que eu me sentia assim e achei que era recíproco. A cada corrida eu conseguia chegar mais perto do pódio. E a cada nova conquista o dinheiro crescia nas minhas mãos.

— Um dia ela disse que quando eu conseguisse chegar entre os três, ou seja, subisse no pódio, nós faríamos amor. Como fui um trouxa. Houve uma batida, carro quebrado, enfim, Guto Speranzi chegou em terceiro lugar. Não sei se vibrei mais com o feito ou com a chance de tê-la em meus braços. — Amapola enche as duas taças mais uma vez.

— Nataly apareceu depois do pódio, linda para caralho, desejável e o burro aqui caiu de boca na garota, ali mesmo na garagem do meu carro. O pai da garota apareceu na hora, ninguém mais ninguém menos que o dono da porra toda, Frank Morgano. Eu tinha acabado de foder a menininha do cara mais poderoso das pistas. Estava acabado antes mesmo de começar. Na hora ainda, ela falou que eu tirei a sua pureza. Seu pai não gritou, não xingou e nem mandou me bater. Foi embora, levando-a. — Respiro um pouco e olho Amapola tensa para saber o que aconteceu.

— No próximo treino ele mandou me chamar. Disse que eu tinha que controlar a Nataly, agora que eu tinha tirado a honra dela. Não precisava ser para sempre, eu só tinha que aguentar ficar casado com ela por três anos e em troca ele me patrocinava. Claro que isso brilhou os meus olhos, mas o que eu sentia pela Nataly pesou muito mais. Eu amava a garota e achei que ela também se sentia assim, só tinha feito a cena para não ser advertida pelo pai. Topei o acordo e só percebi que era sério quando os papéis estavam na minha frente para assinar. Quando ela ficou sabendo pelo seu pai, conheci a verdadeira Nataly.

Não acredito que você me vendeu para esse desclassificado. Quem é Guto Speranzi, papai? Um ninguém. Eu não quero me casar com ele.

— Isso me quebrou definitivamente e, ao mesmo tempo, aproveitei a oportunidade, porque o meu coração estava sangrando, mas eu tinha o patrocínio dos poderosos e a estrela no peito. O casamento foi feito e Nataly frequentou a cama do pobretão no primeiro ano. O Durango ganhou o campeonato por dois anos seguidos e em frente às câmeras éramos um casal perfeito. Fora delas, ela trepava com outros homens.

— No dia do acidente... — Paro para respirar, porque o peito dói, como se estivesse vivendo tudo de novo.

— Guto, se não quiser mais falar eu entenderei.

— Nesse dia eu a peguei fodendo com o meu concorrente direto. Nos boxes, assim como fez comigo. Foi um baque aquela imagem, porque eu ainda era apaixonado por ela. Muito, muito mesmo... os momentos que vivemos juntos, quando ela me queria, foram incríveis, e isso alimentava o meu lado romântico. Imaginava que ela me amaria um dia. Fui para a pista com sangue nos olhos e sofri o acidente.

— Morgano apareceu quando eu ainda estava no hospital, sem os movimentos das pernas, informando que nosso acordo tinha acabado porque além de ser fracassado e não conseguir segurar minha mulher com as pernas fechadas, eu não correria mais e não seria mais um campeão. — Nem percebo que estou chorando. Amapola me dá um guardanapo e eu enxugo minhas lágrimas, enquanto ela enxuga as dela.

— Minha lesão foi séria, porém, eu me recuperei cem por cento em três meses. Só que as pistas me traziam lembranças que eu não queria mais ter. Também não queria vê-la nos braços de outro, porque ela tinha encontrado o próximo idiota. E como não sabia fazer mais nada da vida, encontrei as pistas de testes para alimentar minha sede de velocidade. Acumulei dinheiro nos anos de vitória e patrocínios, estou tranquilo nesse quesito. Não sou mais o pobretão agora.

Vejo Amapola, agora sentada em cima de uns pneus do seu carro vencedor do dia, vestida com um moletom preto para esconder sua verdadeira identidade e sinto uma vontade louca de reviver a emoção de amar alguém em um lugar especial para mim. Só que ela também é linda, é poderosa, seu pai é dono da escuderia dela e tem um noivo esperando uma resposta sobre o futuro.

— Vamos, campeã, acho que já falei demais hoje.

— Vamos, campeão. É bom desabafar de vez em quando. Agora preciso comer. Acha que encontraremos uma hamburgueria aberta?

— Talvez uma padaria para tomarmos um café. — Estico a mão para ela, que segura forte na minha. Fechamos a garagem e caminhamos em silêncio até a portaria.

PAIXÃO NO RETROVISOROnde histórias criam vida. Descubra agora