Capítulo 33 - Pedro

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A dor de perdê-la tinha sido muito maior do que a dor de nunca a ter tido.

Essa constatação me doeu fundo, estremecendo o tutano dos meus ossos.

Doía menos quando eu não sabia o que era realmente te perder.

Relembrei com amargura aqueles anos na fazenda, quando a admirava de longe. Menina tonta, meio avoada, meio perdida. Tão linda, tão inadequada para a vida rural, sempre toda embonecada, sempre embaixo da saia da mãe. Algo em seus olhos pequenos me fazia suspirar.

Eu, um moleque sem futuro, menino de fazenda, filho da governanta e do tratador de cavalos, pele escura em uma fazenda com um passado sujo, escravocrata. Basicamente, um belo de um ninguém. Um cinderelo às avessas, suspirando pelos cantos pensando logo na filha mais mimada do dono da fazenda.

Patético.

Paula era mais simpática. Tinha um ar mais fechado, mas era gentil com todos da fazenda, adorava andar de cavalo, nadar no açude, enfiar a mão na terra úmida procurando minhocas para pescar. Eu era apenas um ano mais velho que ela mais ou menos, e várias vezes nos aventuramos pelos limites da fazenda caçando passarinhos.

Teria sido fácil me apaixonar por Paula. Talvez até lógico, já que estávamos constantemente juntos.

Mas meu coração já estava irremediavelmente encantado pela outra, pela fedelha mimada.

Manuela.

Jesus, até o nome era irritante.

Não conversava muito com ninguém. Não gostava muito de cavalos, ou açudes, ou de comer fruta crua no pé. As mãos pequenas estavam sempre limpinhas, rosadas. Estava sempre no mundo da lua, pensando em deus sabe o que.

Até lá pelos doze anos, era apenas uma fedelha. Até um dia em que a mãe a levou para Areias para comprar um vestido. Minha mãe queria um conjunto novo de linhas de costura, então eu fui junto com as duas no carro.

Manuela nem me dirigiu o olhar. Ficou o caminho todo até a cidade encarando a janela de forma meio sonhadora, meio perdida. Pirralha irritante, pensei.

Fomos no armarinho comprar as agulhas para minha mãe, e depois em algum ateliê ver roupas. Sentei no fundo da loja, esperando.

Por uma cortina de tecido translúcido, consegui acompanhar o atendimento. De fato, seu corpo tinha começado a mudar, a cintura mais estreita, a sombra de um busto surgindo, as perninhas mais torneadas, o rosto menos arredondado. A menina estava ficando para trás.

Mas nada disso tinha realmente me chamado a atenção. O que me chamou a atenção foi o brilho do seu sorriso, que eu nunca tinha visto antes, não tão de perto. Ela era tão avoada e distante que eu nunca a tinha visto realmente sorrir como nesse dia.

Depois desse dia, passei a observá-la de longe com olhos atentos. Seus gestos me chamavam a atenção. A forma como se movia, como sorria de vez em quando, quando estava com a mãe ou com as irmãs. Gostava do formato do seu rosto, da curva que o nariz fazia para encontrar as sobrancelhas, da forma delicada como seus pés tocavam o chão, quase levitando.

Mas nunca fui capaz de lhe dirigir a palavra. Era como tentar falar com alguém inatingível, como um anjo.

Eu me sentia absolutamente ridículo, com aquela idade, morrendo de medo de me dirigir a uma menininha mimada. Mas era incapaz de fazer diferente.

Até o dia trágico da morte de Sarah.

Sarah era das pessoas mais gentis que uma pessoa poderia conhecer. Cuidava das filhas como uma pantera, carinhosa e protetora. Mas cuidava também de sua pequena comunidade, da fazenda que dirigia com o marido, acima dele na verdade. Tratava todos os funcionários com carinho e respeito, mas especialmente minha mãe era tratada como sua própria irmã. Era exigente com todos, firme, mas carinhosa.

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