O café da manhã é servido, e eu devoro dois pães sem pestanejar. Tenho me alimentado tão pouco nesses últimos meses, nem me lembro quando foi a última vez que pude comer pra valer. Mas há tantas coisas que eu não me lembro. Isso não faz muita diferença. Para acompanhar os pães duros, eles servem uma espécie de chá de ervas. Experimento colocar um pouco de açúcar no meu chá, e quando tomo, constato que de fato, eu gosto de tomar chá sem açúcar. Katniss falou a verdade. Meu olhar vaga, enquanto como meu terceiro pão, à procura de Katniss. Não avisto ela, ou Finnick ou Gale.... Ando até minha barraca, intocada, coloco meu saco de dormir lá dentro, e me sento do lado de fora, olhando o céu. Passos revelam que alguém se aproxima. Num impulso, eu cerro os punhos, mas relaxo imediatamente ao perceber que é Jackson. Ela tem olheiras profundas, assim como todos os outros. Me pergunto se isso se deve à minha chegada. Ela senta ao meu lado, e mastiga um pão ruidosamente.
- Katniss fez prontopops cantando, alguma vez? – pergunto, de súbito. Olhando essa paisagem, bela e assombrosa, a névoa envolvendo os grandes prédios, faz com que eu me sinta inquieto. A canção que ouvi uma vez, ecoa em minha mente, e me acalma. E aquela voz, só podia ser dela. De Katniss.
Jackson engole o pão, e eu ofereço um pouco do meu chá. Mais por não gostar do sabor dele com o açúcar, do que por generosidade. Ela aceita, e toma tudo num gole só. Em seguida ela limpa uma sujeita invisível em sua bochecha com as costas da mão, e me olha.
- Real – ela diz. – Temos uma gravação dela, cantando... Árvore forca.... Acho que é este o nome da música.
Percebendo que eu não tenho intenção de falar, ela continua.
- Peeta, nós queremos te ajudar. Qualquer coisa que perguntar, iremos te responder, a verdade.
Olho em seus olhos castanhos, fixamente. Jackson ruboriza.
- Katniss... ela me amava? – pergunto, por fim.
E eu sei que ninguém poderá me dar essa resposta. E talvez, essa seja a única resposta que eu preciso.
- Podemos te responder qualquer outra coisa – ela diz, e me lança um sorriso como pedido de desculpas.
Sorrio de volta. Os cantos de minha boca doem ao fazer esse movimento. Parece enferrujados, desacostumados de sorrir.
- Eu ficaria grato, pois tem um milhão de coisas que eu não consigo compreender – respondo.
Em questão de segundos, todos os soldados estão reunidos em volta de mim. Jackson explica, que todos devem se esforçar, e responder se minhas lembranças são reais ou irreais. Eles parecem menos ameaçadores, apesar de suas armas estarem bem engatilhadas em suas mãos. Me sinto desconfortável por fazer perguntas, talvez até tolas, mas preciso reunir cada fragmento de memória, separar o que não é real, e isso se aplica até as coisas mais simples.
Pigarreio.
- Na primeira vez que fui paras os jogos, Katniss se voluntariou.
- Real – a voz de Leeg se destaca. Seus olhos estão assombrosos. Estão injetados de um vermelho vivo, que se mistura com as manchas amarelas, e o verde de sua íris. Parece que ela chorou um bocado.
- Ela queria ir comigo para os jogos, para me matar – concluo.
- Irreal – todos gritam, quase em uníssono.
- Ela se voluntariou, porque Prim, a irmã dela havia sido sorteada – Mitchell esclarece.
Eles percebem minha expressão confusa. Então eu me lembro. Claro. Como ela pode ter se voluntariado para me matar? Consigo até ouvir a voz de Effie em meus ouvidos. Damas primeiro. Seja lá qual o motivo disso, ela não teria como saber que eu iria para os jogos também.
- Peeta – Jackson chama. – Se quer mesmo nossa ajuda, tem que acreditar em nós. O que Mitchell disse é a verdade.
Suspiro.
- Talvez isso não vá ajudar. Mesmo que vocês esclareçam tudo, eu posso voltar a me confundir no dia seguinte, ou até no mesmo instante. Mas, se serve de consolo, agora eu acredito que mudaram algo dentro de mim quando estive na capital.
- Eles devastaram suas memórias – Boggs aparece atrás de nós, e diz isso com convicção.
- Mas.... Porque?
- Queriam te transformar numa arma contra Katniss. Enfraquecê-la, para consequentemente enfraquecer a rebelião – ele explica.
- Mas não conseguiram isso. Me devastaram, mas nada aconteceu a ela.
A tortura que sofri, me atinge em flashes dolorosos. E Katniss continuava a emergir na causa rebelde, fazendo prontopops para exibir a Panem, sabendo que de alguma forma eu iria pagar por isso.
- Não diga isso. Ela passou a maior parte do tempo, em que ficou no 13, no hospital. Sofreu traumas emocionais tão devastadores quanto os seus, tudo isso, por saber que você estava na capital, nas mãos de Snow.
- E pela destruição do 12 – alguém murmura e eu reconheço a voz de Gale. Todos nós viramos, encontrando Katniss, Gale que está bem próximo a ela, Finnick, e a equipe de filmagem.
Sim. O distrito, que era minha casa, reduzido a cinzas. Todos, inclusive meus pais.... Meus irmãos.... Mortos. Todos lançam olhares atravessados para Gale, mas ele se limita a me fitar. Há algo em seus olhos... Desafio?
— A maioria das pessoas do 12 foram mortas no fogo – digo, mais não espero uma resposta.
— Real. Menos de 900 de vocês chegaram ao Distrito 13 vivos – Jackson diz, e olha para baixo.
De repente, algo que eu nunca havia cogitado, recai sobre mim, como um golpe certeiro.
— O fogo foi minha culpa – sussurro. A tensão toma conta do meu corpo. Me sinto prestes a vomitar.
— Não real. O presidente Snow destruiu o Distrito 12 do modo como ele fez no 13, para enviar uma mensagem para os rebeldes – Finnick fala, calmamente.
O silencio e a tensão pairam no ar. Posso ver Gale dando um passo para mais perto de Katniss. Dedos sendo postos nos gatilhos. Minhas mãos tremem mais do que eu consigo disfarçar, e eu me pego desejando ter a corda de Finnick para distraí-las.
- Na escola, nunca tinha pão no lanche. – digo, e todos são pegos de surpresa.
Porém, mudar de assunto drasticamente foi meu modo de escapar disso tudo. De tanta tragédia.
Depois de olhares aturdidos, a expressão de todos relaxa, e um a um, eles vão se virando para encarar Katniss. Ela esboça um meio sorriso, antes de responder.
- Real.
E todos caem na gargalhada, menos eu, que continuo com aquele frio na boca do estômago, e ver Katniss, rindo, sabendo que eu sou a causa disto, pode parecer maluquice, mas no meio de tanta loucura, pode ser algo até normal para se sentir. Mas me faz sentir algo que eu não sentia há tempos. Algo parecido com felicidade.
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A Esperança - Peeta Mellark
FanfictionEsta é uma fanfiction do livro "A esperança", pela perspectiva do personagem Peeta Mellark.